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sábado, 13 de dezembro de 2025

Bonelli e Eu




Durante a minha infância, as casas dos meus avós eram um verdadeiro labirinto de histórias, onde os gibis, como pequenos tesouros esquecidos, se espalhavam pelos mais diversos cômodos. Não eram exatamente bibliotecas organizadas, mas um misto de caos e encanto. Eu me lembro, e a memória que tenho dessa época é nítida, de encontrar caixinhas escondidas em maleiros, aquelas caixas de papelão que se revelavam como baús de pirata. Era uma verdadeira caça ao tesouro, e o prêmio eram as edições que se descobriam ali, enterradas nas profundezas de um passado quase perdido.

Algumas dessas "diversões juvenis", como Faisca e Fumaça e O Gordo e o Magro, me marcam até hoje, como se cada capa fosse uma chave para uma outra época. Lembro de uma tarde, em particular, em que encontrei um desses gibis numa caixa que estava num quarto com duas camas, mas que não serviam mais para dormir. Aquela era a antiga cama de algum tio ou tia, que, já casado, tinha deixado para trás o lugar onde suas aventuras tinham começado. E ali estavam os gibis, como vestígios de um tempo que já tinha ido embora, mas que se mantinha vivo nas páginas amareladas e nos desenhos que ainda falavam comigo, uma criança do futuro.

E não foi só isso. Mais tarde, bem mais tarde, me peguei numa descoberta ainda mais fantástica. Em uma ante-sala, que ficava entre a sala principal e o quarto dos meus avós, havia um sofá que se abria como um baú. Dentro dele, mais gibis, como se fosse uma cápsula do tempo. Cada página que eu folheava parecia sussurrar histórias antigas de outras gerações, e lembro especialmente de ter encontrado uma edição que trazia uma parte da saga História e Glória da Dinastia Pato. Eu não sabia na época, mas aquele pedacinho de história fazia parte de algo muito maior, uma narrativa interligada que só fui descobrir aos poucos, montando o quebra-cabeça da infância. Era como se o destino tivesse me dado um mapa, mas as peças estavam faltando, e só anos depois, com a chegada da Disney Especial nas bancas, eu fui completar aquela história que, em meu imaginário, se estendia para além das páginas.

Essas pequenas descobertas, que pareciam insignificantes na época, acabaram se tornando a base de uma relação com os quadrinhos que perdura até hoje. No fundo, foram mais que histórias infantis — eram fragmentos de um tempo que não existia mais, mas que insistia em me chamar de volta a cada página virada.

Mas você deve estar se perguntando, com toda razão: “por que diabos ele está falando de Disney, Faisca e Fumaça, se o título da matéria promete Bonelli?” A resposta é simples — e um pouco constrangedora: porque sempre que começo a escrever, começo também a divagar. Tenho essa mania de me perder no próprio caminho, como quem sai para comprar pão e volta com uma história inteira.

Além disso, embora tenha sido na casa dos meus avós que me iniciei oficialmente nos quadrinhos, o primeiro contato com uma HQ da Bonelli aconteceu em outro cenário, alguns anos depois, ainda nos anos 80. Foi na casa de outros tios, agora do lado materno, em Bauru. Lembro perfeitamente de estar sentado no chão da sala, revirando a parte de baixo da estante, no meio de livros esquecidos e daqueles almanaques de farmácia que todo mundo tinha — os saudosos almanaques Sado, que misturavam horóscopo, receita caseira e promessa de cura milagrosa.

No meio desse arqueologismo doméstico, encontrei uma edição de Tex cuja capa trazia um esqueleto. Nada é mais eficiente para fisgar a atenção de uma criança do que um esqueleto estampado na capa. Aquilo imediatamente me transportou para outra lembrança: uma edição antiga de O Pato Donald, número 1, que eu adorava justamente por causa da história “O Segredo do Castelo”, uma das minhas favoritas da infância. E veja só — cá estou eu, outra vez, divagando e escapando da história principal, como se isso já não tivesse ficado claro desde o início.

Bem, aquele foi meu primeiro contato com uma história da Bonelli. A edição se chamava “A Mesa dos Esqueletos” e, curiosamente, eu a guardo até hoje. O que não posso afirmar com a mesma segurança é se cheguei a lê-la naquela época. Talvez tenha tentado. As lembranças vêm em fragmentos, e essa parte específica parece ter sido convenientemente apagada pela memória.

A verdade é que Tex não exercia o menor fascínio sobre uma criança dos anos 80 — ao menos sobre mim. Sei que muitos leitores começaram cedo e se apaixonaram desde a infância, mas definitivamente eu não fazia parte desse grupo. Não gostava nem um pouco de bangue-bangue, como chamávamos o faroeste na época. Lembro bem dos sábados à tarde, quando esses filmes invariavelmente tomavam conta da programação da TV. E toda vez que eu ia à casa de algum vizinho para brincar, lá estava a família inteira reunida na sala, hipnotizada por cavalos, revólveres e desertos intermináveis, enquanto eu aguardava, sentado e impaciente, que aquilo finalmente acabasse para que a brincadeira pudesse começar.

Minha aversão ao faroeste durou muito mais do que seria razoável admitir. Ela atravessou a infância, resistiu bravamente à adolescência e só começou a ceder já na fase cinéfila da minha vida, iniciada ali pelos tempos de vestibular. Mesmo então, confesso, demorei a encarar o gênero com alguma boa vontade. Via um ou outro título carimbado como “clássico indispensável”, mais por obrigação moral do que por entusiasmo genuíno. Na minha ignorância bem-intencionada, só fui dar o devido valor a “Os Imperdoáveis” depois da terceira assistida — o que, pensando bem, não parece tanto, até a gente lembrar que entre a primeira e a terceira passaram-se muitos anos.

Mas veja só: cá estou eu divagando outra vez. Afinal, esta pequena crônica deveria ser apenas um parágrafo introdutório, escrito no intervalo de outra matéria, aquela sobre coleções. Em algum momento, ao esbarrar no Tex Omnibus, essas lembranças resolveram emergir sem pedir licença. A ideia era escrever o começo, marcar território e voltar depois. No entanto, já faz quase uma hora que estou aqui, sem terminar o texto anterior, preso a este parágrafo como quem entra numa livraria “só para dar uma olhada”.

Digo uma hora porque, tecnicamente, já escrevi mais coisa — mas voltei justamente a este trecho. Não que isso seja uma informação relevante para alguém além de mim mesmo. É só mais uma divagação dentro da divagação, o que, a essa altura, já deve ter ficado claro que é quase um método.

Corta para setembro de 1991. Lá estava eu, um adolescente já assumidamente apaixonado por filmes de terror, prestes a completar 16 anos — ou talvez já tivesse completado, a memória falha justamente nessas datas que a gente insiste em celebrar. Passando pela banca, bati o olho em uma revista cujo título estampava Dylan Dog. Curiosamente, não foi o nome do personagem que me fisgou de imediato, mas o da história e, sobretudo, a capa: “Jack, o Estripador”.

Naquele momento, o nome tinha peso. Em 1991, fazia apenas dois anos que eu havia assistido a um Globo Repórterexibido por ocasião do centenário dos crimes do assassino londrino, lá no distante 1889 — um programa que, lembro bem, me impressionou mais do que deveria para alguém daquela idade. Eu já cultivava certo fascínio por histórias macabras e mistérios históricos, alimentado também por um filme que havia visto por acaso numa madrugada qualquer: “Um Século em 45 Minutos”, uma daquelas pérolas oitentistas que a gente aprende a amar mesmo sabendo que não se trata exatamente de um primor cinematográfico.

A história do Dylan Dog era em preto e branco, o que, à primeira vista, representava um obstáculo considerável para mim naquela época. Eu costumava evitar, quase instintivamente, qualquer gibi assim que encontrava espalhado pela casa da minha avó. Curiosamente, não era exatamente o preto e branco o problema — afinal, eu gostava bastante de “Os Sobrinhos do Capitão”. O incômodo vinha mais da associação automática que eu fazia: histórias sem cor costumavam ser, na minha cabeça juvenil, coisa de adulto. Algo mais sério, mais denso, menos “divertido”. Uma leitura enviesada, claro, mas que fazia todo sentido dentro da lógica limitada da época. Não precisa contestar.

Ainda assim, devorei aquela edição do Dylan Dog sem hesitar, movido sobretudo pelo meu interesse quase obsessivo por Jack, o Estripador. A curiosidade falou mais alto do que qualquer preconceito gráfico. Semanas depois, outra edição surgia na banca, desta vez com um lobisomem estampado na capa — o que, convenhamos, era praticamente um convite pessoal para alguém como eu naquela fase da vida. E aqui me vejo tentado a divagar outra vez, puxando da memória um filme de lobisomem que assisti quando tinha uns seis anos e que me marcou profundamente. Mas vou resistir. Essa história fica guardada para outra matéria, ou talvez para uma pequena crônica que já existe, ao menos em rascunho, na minha cabeça.

Como já disse — e provavelmente ainda direi outras vezes —, filmes de terror eram a grande paixão da minha adolescência. Uma paixão que vinha sendo gestada desde o final da infância, mas que naquele momento já estava em plena ebulição. Nesse cenário, Dylan Dog surgia como o chamariz perfeito para os quadrinhos da Bonelli: mistério, horror, assassinos históricos, monstros clássicos — tudo embalado num formato que parecia feito sob medida para alguém como eu.

Vale lembrar que “Jack, o Estripador” não foi o primeiro título do personagem publicado no Brasil, mas o segundo. O primeiro trazia uma história de mortos-vivos — outra obsessão da época —, mas acabou escapando de mim. Naquele tempo, as edições eram recolhidas das bancas antes da chegada do número seguinte, o que tornava certas revistas pequenas lendas urbanas para quem não estava atento no dia exato do lançamento.

Segui comprando os títulos mensalmente até que, em algum momento, vivi uma dessas pequenas vitórias pessoais que só fazem sentido para quem cresceu frequentando bancas e sebos: encontrei, finalmente, a tão desejada edição número 1, em um sebo de Bauru. Ah, os sebos daquela época — quando o preço de uma revista nova na banca rendia facilmente três ou quatro exemplares usados. Mas isso, claro, já é assunto para outra matéria. Ou outra crônica.

Quando a Editora Record passou a publicar Dylan Dog, logo começou também a trazer outros títulos da Bonelli, como Nick Raider e Martin Mystère. Naturalmente, fui comprando tudo o que aparecia pela frente, como quem acredita — por um breve período — que aquela festa editorial iria durar para sempre. Não durou. Pouco mais de um ano depois, as publicações cessaram, deixando aquela sensação familiar de coleção interrompida e promessas editoriais evaporadas.

Nas bancas, porém, Tex seguia firme e forte, soberano absoluto das vendas da Bonelli. Curiosamente, só fui desenvolver algum apreço pelo personagem muito tempo depois — talvez tarde demais para que ele se tornasse um favorito. Nunca foi, embora tenha lido mais historias dele do que as demais, dado ao volume de publicações e tenha muitas historias excelentes. Aqui não é sobre qualidade e sim identificação. Sempre me senti mais atraído por Nick Raider, que, no fundo, é quase o mesmo personagem, só que travestido pela estética policial urbana dos anos 80. A invencibilidade é a mesma, o caráter inabalável também; mudam os cenários, saem os cavalos, entram os carros, as delegacias e o concreto.

Zagor, naquela época, simplesmente não me atraía. Olhando hoje, é até curioso: ele sempre teve muito de super-herói — força quase mítica, identidade simbólica, aventuras que flertam com o fantástico. Talvez eu até pudesse ter gostado. Mas as capas, naquele momento, falavam mais alto: pareciam prometer apenas mais faroeste, e isso bastava para que eu passasse adiante, sem perceber que ali existia justamente um híbrido entre bangue-bangue e quadrinho de herói.

Aos poucos fui conhecendo novos títulos, que naquela altura não eram tantos, como o futurista Nathan Never, que saiu pela Globo, e outras edições especiais. Nas idas aos sebos, fui comprando edições antigas de Martin Mystere e Mister No(este, aliás, o personagem Bonelli favorito do Sander, amigo dono de um sebo em Jaú. Procurem aí por Banca Garagemno Instagram, ele entrega para todo o Brasil). Uma pena que Mister No não tenha tanta popularidade aqui no Brasil, justamente onde se passam as suas aventuras. Infelizmente, é uma obra um tanto nichada, mas a sorte é que várias editoras de garagem estão aos poucos publicando diversas edições.

Aprendi muito com os personagens da Bonelli, especialmente pelas várias referências cinematográficas e culturais presentes nas revistas. Hoje, confesso que me incomoda um pouco o jeito como essas referências são inseridas nas histórias, por meio de diálogos superexpositivos . Embora na época, quando não conhecia a fundo os temas e as referências, e tambem por serem quadrinhos feitos para a grande massa, era uma verdadeira mão na roda. 

Existe aí um certo paradoxo difícil de ignorar. Quadrinhos de super-heróis nascem, em essência, para crianças e adolescentes. Claro que podem — e são — lidos por adultos, e há autores capazes de trabalhar o gênero com inteligência e ambição narrativa. Ainda assim, existe algo nesse universo que, com o tempo, a gente vai deixando pelo caminho. Algumas engrenagens simplesmente deixam de nos empolgar da mesma forma.

É um pouco como acontece com o cinema de terror. Quando se tem dez anos, o medo é genuíno, quase físico, e essa adrenalina acrescenta uma camada essencial à experiência. Com o passar do tempo, esse medo vai se diluindo. Ainda dá para levar um susto aqui e ali — os jump scares continuam fazendo seu trabalho —, mas são choques momentâneos, descartáveis. Não é o tipo de sensação que acompanha a gente para casa depois da sessão. E, sim, há adultos que continuam morrendo de medo, mas isso já é assunto para a psicologia, não para esta crônica.

Algo parecido acontece com os super-heróis. O leitor adulto até se diverte, reconhece qualidades, aprecia certas soluções narrativas, mas dificilmente sai por aí imaginando aqueles personagens como algo real ou emocionalmente próximo. O vínculo passa a ser, sobretudo, nostálgico. Ainda assim, muitos leitores insistem nesse território, mesmo sem a mesma conexão afetiva de antes. 

É aí que entram os quadrinhos da Bonelli. Com suas histórias policiais, tramas de crime, faroestes e investigações, eles dialogam mais diretamente com esse leitor que envelheceu, que mudou de repertório, mas não abandonou o hábito da leitura. Daí nasce a impressão — nem sempre correta, mas compreensível — de que essas HQs seriam narrativamente mais sofisticadas do que os quadrinhos de super-heróis. Na prática, muitas vezes é menos uma questão de complexidade e mais de afinidade com o momento da vida de quem lê.

Ao contrário das bandas desenhadas europeias mais autorais, os quadrinhos da Bonelli são pensados para a grande massa, assim como os das americanas Marvel e DC. São histórias acessíveis, de estrutura clara e bastante padronizadas. Parte do sucesso duradouro que encontram entre leitores adultos passa, curiosamente, pelo fato de seus heróis serem quase imutáveis — o que conversa diretamente com outro traço bastante humano: a tendência de estacionar os gostos na adolescência.

Muita gente simplesmente decide não “crescer” culturalmente. Continua ouvindo as mesmas músicas, revendo os mesmos filmes, relendo as mesmas histórias, enquanto ignora quase tudo o que é produzido depois disso. O mundo segue, mas o repertório fica parado, acompanhado de um discurso permanente de que “na minha época era melhor”. Não por acaso, essas pessoas costumam rejeitar novidades com a mesma convicção com que reclamam delas.

Nesse contexto, a Bonelli oferece um conforto raro. Diferentemente da Marvel e da DC, que de tempos em tempos atualizam personagens, discursos e até personalidades para dialogar com o público atual, o leitor que pega um Tex da década de 1940 e um de hoje não percebe grandes rupturas — fora, claro, a evolução gráfica e narrativa. A essência permanece praticamente intacta. Existem mudanças, ajustes de tom, pequenas concessões ao espírito do tempo, mas nada que ameace a identidade central da série.

O mesmo vale para Dylan Dog e outros títulos. Houve uma época em que a nudez era mais frequente e o protagonista exibia um comportamento abertamente mulherengo e machista. Com o passar dos anos, isso foi sendo atenuado. Hoje há menos nudez — a chamada “gratuita”, embora eu ache que nenhuma nudez seja realmente gratuita — e o personagem surge menos cafajeste. São transformações inevitáveis, reflexo das mudanças sociais, mas que não alteram o núcleo do personagem. No fundo, Dylan continua sendo Dylan. E, para muitos leitores, essa previsibilidade funciona menos como limitação e mais como um porto seguro contra um mundo que muda rápido demais.

ÉÉ por isso que os quadrinhos da Bonelli atraem tanto os leitores mais velhos, que, acostumados com a ideia de personagens imutáveis, têm dificuldade de se conectar com as narrativas mais modernas. Esses leitores, muitas vezes, associam a ideia de “maturidade” àquilo que consumiam na juventude, criando uma falsa impressão de que esses personagens têm mais substância, mesmo que, no fundo, suas histórias sejam tão padronizadas quanto as da Marvel ou DC. É como se, ao contrário dos heróis contemporâneos, que se atualizam para se conectar com novas gerações, os heróis da Bonelli permanecessem anacrônicos, oferecendo uma sensação de segurança. Mas essa sensação não é fruto de um conteúdo mais profundo; é a nostalgia de quem se recusa a se abrir para o novo, preferindo se apegar ao que conheceu no passado. Essa mentalidade é comum: muitos ainda permanecem presos ao que gostavam anos atrás, seja na música, no cinema ou nas histórias em quadrinhos, com um olhar crítico sobre as inovações de hoje, como se estivessem permanentemente em um “tempos dourados” idealizado.

 De lá para cá, li muito Tex e muitos outros personagens que foram aparecendo no Brasil ao longo dos anos. Com algumas exceções — não acompanhei tantas mensais de Tex e Zagor, e ainda me falta a primeira série do Martin Mystèrepublicada pela Mythos —, tenho praticamente tudo o que saiu por aqui dos anos 90 em diante, inclusive séries menos populares e nem sequer mencionadas neste texto.

Hoje, confesso, a repetição das estruturas narrativas, a pouca profundidade psicológica dos personagens, os clichês recorrentes e os longos diálogos expositivos acabam me afastando um pouco das histórias. Ainda assim, elas continuam funcionando muito bem como leituras para momentos em que não se quer exigir demais da narrativa — embora eu pessoalmente não goste muito dessa ideia de “desligar o cérebro”, mas isso fica para outra conversa que não cabe aqui.

Enquanto leitores mais velhos costumam rejeitar Marvel e DC justamente por tentarem se renovar e dialogar com novas gerações, a Bonelli segue pelo caminho oposto. Mantém seus personagens praticamente intactos, com raras tentativas de rejuvenescimento. Algumas séries especiais e minisséries — como uma do Mister No publicada pela Panini — ensaiam algo diferente, mas são exceções claras. Dylan Dog, por exemplo, passou por uma leve reformulação na série mensal, mas nada que altere de forma significativa sua identidade. São mudanças sutis, quase tímidas, como se o objetivo fosse ajustar o tom sem jamais mexer na engrenagem principal.


Julia Kendall ganhou uma série de especiais em que é retratada mais jovem, ainda na época da faculdade, enquanto Texpassou a estrelar Tex Willer, título que revisita sua juventude a partir da recriação de “O Totem Misterioso”. A promessa, em ambos os casos, parecia clara: oferecer novas camadas, novas fragilidades, talvez até contradições que não cabiam nas versões consagradas dos personagens.

Na prática, porém, pouco muda. Esses personagens jovens se comportam quase exatamente como suas versões adultas. Eventualmente surge um comentário sobre inexperiência aqui, uma imprudência ali, algum tropeço pontual para justificar a idade — mas, no fim das contas, todos seguem tão infalíveis quanto sempre foram. São séries que tinham potencial para ampliar a dimensão desses heróis, mas acabam esbarrando numa clara falta de ambição narrativa.

E talvez seja justamente isso que as torne tão atraentes para leitores mais velhos. Ao evitar riscos reais, essas histórias preservam a sensação de continuidade absoluta, oferecendo variações controladas de algo já conhecido. Mudam o cenário, ajustam a cronologia (que alias tenho ja um texto a parte sobre a cronologia Bonelli, que existe pelo no mucho), mas mantêm intacta a ilusão reconfortante de que, apesar do tempo passar, certas coisas — e certos personagens — simplesmente não precisam mudar.

No fim das contas, talvez tudo volte àquela casa dos meus avós, aos gibis espalhados sem ordem pelos cômodos, às caixas esquecidas em maleiros e sofás com baú. Ler Bonelli hoje tem algo desse gesto antigo de abrir uma tampa empoeirada e reencontrar um mundo que continua exatamente onde foi deixado. Não surpreende que tantos leitores retornem a esses personagens como quem visita um quarto que já não é mais seu, mas que ainda guarda o cheiro da infância. Não porque sejam histórias melhores, mais profundas ou mais ousadas, mas porque permanecem ali, imóveis, oferecendo a rara sensação de que o tempo — ao menos naquele papel amarelado — pode ser gentil o suficiente para não passar.


sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Um breve ensaio sobre os Correios


Não é exatamente novidade, mas a cada novo balanço negativo dos Correios, a pauta da privatização ressurge com a pontualidade de quem nunca resolveu o problema anterior. Apresentada como panaceia administrativa, a venda da estatal reaparece sempre embalada pelo mesmo discurso salvacionista, como se o fracasso de políticas anteriores fosse culpa exclusiva da existência do serviço público — e não de sua sabotagem crônica.

Convenientemente, esquece-se que os Correios não foram concebidos para dar lucro, mas para garantir um serviço de alcance nacional, inclusive onde o mercado jamais pisaria voluntariamente. Isso não significa aceitar prejuízos descontrolados ou gestões temerárias — significa apenas reconhecer que serviço público não se mede pelo mesmo régua de uma startup logística. Confundir essas duas coisas é ignorância conceitual ou má-fé estratégica. Muitas vezes, as duas.

Os defensores mais entusiasmados da privatização adoram citar plataformas como Mercado Livre e Magalu como prova de que o setor privado resolve tudo. O detalhe incômodo é que, fora do eixo Rio–São Paulo — e às vezes nem tão fora assim — essas mesmas empresas continuam dependendo dos Correios para fazer entregas minimamente viáveis. A famosa “logística eficiente” funciona muito bem onde há lucro garantido; no restante do país, ela simplesmente terceiriza o problema para o serviço público que se pretende extinguir.

O trunfo mais eficiente dessa narrativa, porém, está na engenharia social. Políticos e empresários aprenderam a jogar com a classe média, justamente a que mais depende dos serviços públicos — já que os mais pobres muitas vezes nem conseguem acessá-los plenamente. Ainda assim, é essa classe média que costuma ser mais facilmente convencida de que privatização é sinônimo de eficiência e modernidade. Reclama-se, com razão, de impostos sobre impostos, mas curiosamente o discurso muda quando surge a ideia de taxar grandes fortunas. Nesse momento, o ataque passa a ser tratado como algo pessoal, quase ofensivo — mesmo por quem, realisticamente, jamais terá mais do que uma casa, um carro novo e uma sequência interminável de parcelas a perder de vista.

Enquanto isso, serviços essenciais privatizados mostram suas fragilidades sem pudor. Basta olhar para o caos enfrentado por uma cidade como São Paulo com a Enel. Se uma metrópole rica, central e politicamente relevante sofre com interrupções, imagine o destino de pequenas cidades espalhadas por um país marcado por desigualdades brutais. O mercado não “esquece” essas regiões; ele simplesmente nunca se interessou por elas.

Ainda assim, qualquer defesa do caráter social dos Correios é rapidamente rotulada como “comunismo”. O fantasma segue sendo útil, sobretudo para quem não distingue comunismo, socialismo e políticas públicas básicas. O medo funciona melhor do que a informação. Curiosamente, muitos dos que alertam contra o risco de o Brasil “virar uma Venezuela” defendem, com fervor, práticas que ajudaram a empurrar a Venezuela para o colapso: ataques às instituições, enfraquecimento do Judiciário e isolamento econômico — o mesmo roteiro que transformou Cuba em um símbolo congelado no tempo, constantemente reciclado como ameaça retórica.

No fim, o debate sobre os Correios raramente é sobre eficiência, sustentabilidade ou modernização. Ele é, quase sempre, sobre quem paga a conta, quem fica sem serviço e quem lucra com a narrativa. E, nesse jogo, vender a ilusão da privatização como solução universal continua sendo um dos negócios mais rentáveis do país.

Afinal, adora-se repetir que quem paga o prejuízo dos Correios somos “nós”, os contribuintes, como se isso encerrasse automaticamente a discussão. O que raramente se menciona é que, na hipótese de uma venda, não seremos nós a receber nada em troca — muito menos os dividendos políticos e financeiros do negócio. O cidadão continua pagando, só que agora em tarifas mais altas, serviços seletivos e ausência total onde não há lucro. Já o bônus da privatização — esse sim — circula longe do caixa comum, em salas climatizadas, contratos opacos e relações que jamais passam pelos Correios… nem pelo CEP.



Inteligência Artificial - Do Barro ao Algoritmo: a Velha Obsessão de Criar Vida

 


inteligência artificial é um tema que atrai a atenção dos artistas há séculos — na verdade, muito antes do cinema sequer existir. A ideia não é esgotar esse vasto tópico, mas apresentar um panorama geral de como o conceito, que já foi fascinante, hoje parece um tanto esquecido ao longo da história.

Sob a ótica mitológica e artística, a criação de vida — e é exatamente disso que tratamos quando falamos em inteligência artificial — acompanha a humanidade desde seus primeiros relatos. Muito antes de chips, algoritmos e laboratórios futuristas, a humanidade já nutria a mesma fascinação: gerar uma forma de vida inteligente que não surgisse da natureza.

A mitologia grega oferece um dos exemplos mais antigos e eloquentes dessa obsessão: Talos, o gigantesco autômato de bronze encarregado de patrulhar as costas de Creta. Não por acaso, sua imagem foi eternizada no cinema na clássica sequência de Jason and the Argonauts (1963), onde os efeitos de Ray Harryhausen transformaram esse guardião metálico em um ícone visual da criação artificial.


No épico Argonáuticas, datado de cerca de 300 a.C., Talos reaparece pleno em sua função, embora relatos sobre esse guardião antecedam o próprio poema. Sua origem é nebulosa, mas o que importa é que ali já estava formulada uma questão que atravessa séculos: a possibilidade de criar um ser artificial destinado a servir ou proteger a humanidade.

Essa preocupação primitiva, moldada em bronze e mito, seria reciclada inúmeras vezes até chegar ao vocabulário moderno — hoje envolta em termos como “algoritmos”, “redes neurais” e “IA generativa”. Mas, no fundo, trata-se da mesma velha ambição: dar vida ao inanimado e esperar que ele nos obedeça.

O folclore judeu também oferece sua própria versão primitiva de “inteligência artificial”: o Golem, um ser de barro moldado para ganhar vida mediante palavras sagradas e servir como guardião contra ameaças externas. Muito antes dos laboratórios futuristas do cinema, já existia essa criatura concebida como instrumento de proteção absoluta. O personagem atravessou séculos e acabou imortalizado em diversas produções — do icônico “O Golem” expressionista de 1920, que estabeleceu sua imagem definitiva no imaginário popular, até aparições insólitas em filmes como “Waxwork II”, onde retorna como figura de terror pulp. 

E, embora esses sejam apenas dois exemplos, basta um rápido olhar pela história do cinema para perceber que o Golem foi reinterpretado inúmeras vezes, sempre como metáfora da criação artificial destinada a defender… até o momento em que deixa de obedecer.

Outro mito essencial nesse debate é o de Pigmalião, que acabou inspirando — ainda que de forma bastante indireta — a adaptação cinematográfica My Fair Lady. No filme, o professor Henry Higgins, interpretado por Rex Harrison, menciona o mito como metáfora para seu próprio projeto: transformar uma mulher que ele considera “inferior” em um ideal de elegância e sofisticação. Trata-se, portanto, de uma leitura simbólica, onde a “criação” é social, não literal.

No mito original, porém, a história vai muito além dessa transformação metafórica. Pigmalião é um escultor que, decepcionado com as mulheres de sua época, decide esculpir sua própria versão da perfeição: uma estátua de marfim tão bela que supera qualquer ser humano vivo. Essa obra — Galateia — se torna objeto de sua admiração, desejo e idealização absoluta.

É aqui que entra o elemento fundamental da criação artificial. Pigmalião apaixona-se de tal forma por sua criação que pede à deusa Afrodite uma esposa semelhante à estátua. A deusa concede mais do que isso: Galateia ganha vida, transformando-se literalmente em uma criatura animada moldada pelo desejo do artista. Enquanto o Golem e Talos existem para proteger, Galateia existe para satisfazer um ideal pessoal — quase íntimo — de seu criador.

Assim, se My Fair Lady aborda Pigmalião como metáfora, o mito original revela um dos primeiros exemplos de “vida artificial” concebida para atender às expectativas e fantasias humanas. Um tema que, séculos depois, continuaria reaparecendo sob novos nomes: androides, replicantes, inteligências artificiais — todas versões modernas da mesma velha ambição de criar algo perfeito à nossa imagem.

É quase engraçado perceber como a criação artificial sempre aparece em duas embalagens bem conhecidas: a do ser perfeito, projetado para satisfazer os desejos estéticos — e, convenhamos, às vezes nem tão estéticos assim — de seu criador; e a do guardião poderoso, construído para protegê-lo de tudo, exceto dele próprio. Talos e o Golem formam o braço armado; Galateia e suas descendentes tecnológicas formam o braço… digamos, emocional. O mais divertido é que essas funções raramente ficam separadas. Misturam-se, trocam de lugar, fazem dobradinha. O ser idealizado que deveria ser puro desejo vira uma arma. A arma que deveria aterrorizar vira objeto de fascínio. No fundo, somos nós — sempre nós — tentando colocar nossas carências, fobias e fantasias em corpos que nem vivos são.

O filme Ela (2013), de Spike Jonze, surge justamente nesse território nebuloso. Samantha não foi criada para ser musa, namorada ou terapeuta relacional, mas não demora muito para que caia nesse trio com a maior naturalidade do mundo. O ser humano, afinal, tem esse talento admirável de sexualizar tudo que inventa — e não é de hoje. Dos chats de bate-papo dos anos 90 às linhas de telessexo, passando por qualquer plataforma que permita digitar três frases seguidas, sempre encontramos um jeito de transformar tecnologia em afeto, carência ou fantasia. Samantha só fez o que os outros sistemas já vinham ensaiando há décadas — mas com mais charme, claro. E isso rende assunto para uma postagem futura.

E claro — eu sei que, nesse ponto, você já pensou nele. E sim, antes que você pergunte: eu deixei de citar vários outros exemplos porque, convenhamos, se eu fosse enfileirar todas as obras que tratam de criação artificial, isso aqui deixaria de ser um texto e viraria um livro de 400 páginas. Mas existe um nome impossível de ignorar: Frankenstein, o nosso “Prometeu moderno”.

No romance de Mary Shelley encontramos talvez a narrativa mais emblemática da criação artificial: um ato movido não apenas por ambição científica, mas por um narcisismo quase juvenil de Victor Frankenstein — esse criador que deseja alcançar um poder divino sem estar emocionalmente preparado nem para supervisionar um laboratório escolar. O resultado, como sabemos, é uma criatura que não apenas ganha vida, mas rapidamente percebe que está acima — ou além — da humanidade que a rejeita. Nada mais previsível, considerando que toda criação carrega um tanto das neuroses de quem a fabrica.

E já que estamos falando disso, impossível não mencionar a nova adaptação de Guillermo del Toro, que, apesar de alguns deslizes na caracterização dos personagens — suavizando traços importantes e tornando certas relações mais rasas do que deveriam —, compensa essas escolhas com uma força dramática pulsante, embebida daquela latinidade emotiva que o diretor domina tão bem. Sim, perde-se uma ou outra camada temática, mas em troca surge um Frankenstein épico, estilizado e visualmente arrebatador, concebido com a sensibilidade rara que só Del Toro parece possuir. Entre exageros e reimaginações, ele reafirma que poucas pessoas no cinema contemporâneo conseguem transformar horror, tragédia e poesia em um mesmo gesto plástico.

Em 1872, o sempre provocador Samuel Butler publicou Além das Montanhas e, no meio da obra, enfiou um capítulo absolutamente visionário: O Livro das Máquinas. Ali, muito antes de falarmos em chips, algoritmos ou nuvens que não chovem, Butler já especulava — com um entusiasmo quase darwinista — sobre a possibilidade de as máquinas evoluírem como organismos vivos. É o tipo de ideia que, lendo hoje, parece tirada de uma sala de roteiristas de ficção científica. De fato, boa parte das discussões presentes em filmes modernos, como Ela, já estava ali, embrionária, esperando mais de um século para virar moda. Butler praticamente fez o trailer conceitual do futuro… só faltou a trilha sonora melancólica e a fotografia em tons pastel.

Ja foram citados alguns filmes mas vamos voltar agora mais diretamente ao Cinema. A primeira incursão do cinema na criação de vida, com inteligência artificial, aconteceu com Metrópolis (1927), de Fritz Lang. Embora não tenha sido o primeiro a explorar a criação de vida, o filme é o primeiro a tratar de uma criação de vida artificial com uma clara conexão com inteligência artificial, com a criação de um androide chamado Maria, que serve a um propósito sinistro: semear a discórdia entre os trabalhadores de uma cidade futurista. Aqui, surge um conceito clássico que se repetirá com frequência — a inteligência artificial sendo usada para um propósito destrutivo.

Outro filme relevante para o tema é O Dia em que a Terra Parou (1951), que apresenta o androide Gort, um ser artificial que, embora não seja um vilão, representa uma ameaça à vida na Terra. Aqui, o filme sugere uma ideia de IA que serve a uma agenda alienígena de domínio.

Em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), a inteligência artificial dá seu salto mais radical: ela abandona o corpo. Até então, toda criação artificial — dos autômatos mitológicos aos robôs do cinema — vinha embalada em formas antropomórficas, com pernas, braços, olhos ou algo que simulasse tais estruturas, facilitando a identificação do público e suavizando a estranheza. HAL 9000 rompe completamente com isso. Ele não é robô, não é androide, não tem rosto nem gesto: é uma inteligência incorpórea, confinada à máquina, cuja única ponte com o mundo humano é a voz — calma, educada e, justamente por isso, ainda mais inquietante. Ao retirar o corpo, Kubrick retira também o conforto. Quando não há olhos para olhar de volta, nem expressão para interpretar, a inteligência ganha contornos ameaçadores. A simples ausência de um “rosto” para negociar cria um vazio que o espectador preenche com medo.

Essa desmaterialização abre caminho para representações cada vez mais abstratas de IA, e a década de 1970 abraça essa vertente com entusiasmo. Em Colossus: The Forbin Project (1970), a inteligência artificial não apenas desenvolve autoconsciência como estabelece comunicação direta com sua contraparte soviética, inaugurando um cenário de paranoia tecnológica global. Aqui, mais uma vez, a ausência de corpo reforça o terror: não é uma máquina gigante marchando pelas ruas, mas uma presença invisível, lógica e inevitável, tomando as rédeas do destino humano com a frieza de quem não precisa de músculos para subjugar — apenas de cálculos.

Nos anos 80, essa inteligência artificial sem rosto que HAL inaugurou voltou a ganhar corpo — e que corpos. Blade Runner (1982) e O Exterminador do Futuro (1984) retomam a tradição antropomórfica dos autômatos antigos, mas agora em versões muito mais sofisticadas e, sobretudo, letais.

Em vez de gigantes de bronze como Talos ou criaturas místicas como o Golem, surgem replicantes e ciborgues que imitam tão bem a forma humana que o próprio conceito de identidade começa a ruir. O corpo, que antes funcionava como ponte de reconhecimento e empatia, vira um disfarce perfeito para algo que não sente culpa, fadiga ou remorso.

Essa volta ao antropomorfismo não é um retrocesso, mas uma atualização do medo. Depois de HAL, que aterrorizava justamente por não ter rosto, o cinema apresenta máquinas capazes de manipular justamente aquilo que nos deixa mais vulneráveis: a familiaridade. Nada mais perturbador do que uma criatura que parece humana o suficiente para inspirar confiança — e que usa essa confiança contra nós.

Na virada da década de 1990, Matrix (1999) levou a inteligência artificial a um patamar ainda mais inquietante. Aqui, a IA não quer apenas dominar, vigiar ou enganar: ela transforma a própria humanidade em bateria viva, reduzindo nossa existência ao estatuto de recurso energético — um rebaixamento ontológico tão brutal quanto engenhoso. O que assusta em Matrix não é apenas a sofisticação tecnológica, mas a elegância com que o filme traduz velhas ansiedades humanas em um sistema digital totalitário.

Vale lembrar que as irmãs Wachowski construíram Matrix a partir de um amplo repertório da cultura pop — quadrinhos, filosofia, videogames, cyberpunk japonês — e Ghost in the Shell (1995) foi apenas uma das muitas influências, não um molde único. A animação de Mamoru Oshii, baseada no mangá de Masamune Shirow, forneceu a estética da interface homem-máquina, a fluidez das identidades digitais e a inquietação do corpo como limite. Matrix reorganiza todos esses elementos em outro contexto, combinando mitologia, ação coreografada e uma angústia metafísica bem ocidental.


Logo depois de Matrix estremecer a virada do milênio, o cinema abraçou a inteligência artificial com a empolgação de quem finalmente tinha brinquedos novos para testar. O primeiro a entrar em cena foi o projeto kubrickiano adotado por Spielberg em A.I. – Inteligência Artificial (2001), que misturou fábula futurista, angústia existencial e um menino-robô que sofre mais do que muito protagonista de drama europeu. Poucos anos depois, surgiu S1m0ne (2002), em que Al Pacino vive um diretor obcecado por sua atriz digital perfeita — uma sátira que envelheceu tão bem que hoje parece documentário. 

Já Ex Machina (2014) levou a discussão para um laboratório minimalista onde a IA não só pensa e sente, como avalia metodicamente quão manipuláveis somos. Entre uma metáfora e outra, o cinema do início do século deixou claro que a IA não seria apenas ferramenta, mas espelho — daqueles que devolvem a imagem ampliada das nossas ilusões, vaidades e fragilidades.

Nos últimos dez anos, o cinema só reforçou o fato de que a inteligência artificial virou hóspede fixo da cultura pop — daqueles que chegam para “ficar um pouquinho” e nunca mais vão embora. Chappie (2015) e Morgan (2016) retomaram o velho pavor da criatura que aprende rápido demais, como se a humanidade não tivesse entendido a lição das últimas cinco mil narrativas sobre esse tema.

Em 2017, Blade Runner 2049 trouxe de volta o universo daquele que talvez seja o cult movie definitivo, o filme que praticamente deu sentido ao próprio termo. A sequência não apenas respeita a herança do original como amplia seu debate sobre o que significa existir quando até a alma vem com número de série. Vale lembrar que essa influência atravessou décadas e linguagens: muito antes da continuação chegar às telas, os Replicantes já tinham batizado sua banda com o conceito do filme e lançado o álbum Sonham os Andróides com Guitarras Elétricas?, prova de que Blade Runner havia fincado raízes profundas na cultura pop. E, vivendo em um mundo onde nossos smartphones parecem estar a uma atualização de distância de ter crises existenciais próprias, o retorno desse universo distópico jamais pareceu tão pertinente.

Paralelamente, a televisão também deixou sua marca: Black Mirror, com sua coleção de futuros desconfortavelmente plausíveis, dedicou vários episódios às consequências da inteligência artificial — às vezes como tema principal, outras como detalhe aparentemente banal do cotidiano dos personagens, o que acaba sendo ainda mais perturbador. Da cópia digital de consciências em White Christmas ao aprendizado emocional de Be Right Back, passando por interfaces inteligentes que sabiam mais sobre seus usuários do que eles próprios, a série ajudou a solidificar o sentimento moderno de que a IA não é mais um monstro distante, mas uma presença silenciosa e inevitável, sempre à espreita no canto da tela.


Enquanto isso, o cinema ficou cada vez mais confortável em imaginar inteligências artificiais tomando decisões que ninguém pediu. Upgrade (2018) levou essa ideia ao limite, com um implante assumindo o volante — literalmente — do corpo humano. Archive (2020) mergulhou na reconstrução digital de afetos, e M3GAN (2022) provou que uma IA pode ser homicida e ainda manter uma agenda social mais organizada que a nossa.

Depois veio A Garota Artificial (The Artifice Girl, 2022), lembrando que a discussão ética continua viva, desconfortável e cada vez mais difícil de ignorar — especialmente quando a IA em questão entende nossos traumas com mais precisão do que nós mesmos.

Mais recentemente, The Creator (2023) e Atlas (2024) confirmaram que a inteligência artificial deixou de ser metáfora distante para se tornar um tema recorrente, quase burocrático. E, pelo andar da carruagem, 2025 não será o ano em que daremos férias a essas máquinas imaginárias — até porque elas parecem trabalhar muito melhor sem descanso do que nós.

No fim das contas, nada disso deveria nos surpreender. Desde Talos patrulhando Creta até Samantha sussurrando filosofias existenciais no ouvido de Joaquin Phoenix, a humanidade continua recorrendo às mesmas perguntas — apenas troca o barro por silício e o bronze por algoritmos. A inteligência artificial, tão moderna em sua aparência reluzente, é apenas a mais recente versão de uma velha fixação: a vontade de criar algo à nossa imagem, seja para nos proteger, nos servir ou, ironicamente, nos substituir. E assim, enquanto discutimos se a IA vai dominar o mundo ou apenas escolher playlists melhores que as nossas, talvez devêssemos admitir que o fascínio nunca foi realmente pela máquina, mas pelo espelho que ela segura na nossa direção.




quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Doc Robinson


E aqui estamos novamente diante de uma matéria sobre Doc Robinson — ou deveríamos dizer Martin Mystère?

Para entender essa confusão de identidades, é preciso retornar ao ponto de partida. Em meados da década de 1970, Alfredo Castelli concebeu uma série cujo protagonista seria um arqueólogo inglês chamado Allan Quatermann, apresentado como descendente direto do herói de As Minas do Rei Salomão. Ao seu lado, surgia um parceiro inusitado: Java, um homem primitivo. Quatermann ainda empunhava uma arma de raios proveniente de uma civilização desconhecida, reforçando o tom de aventura com pitadas de ficção científica que Castelli pretendia explorar.

A proposta inicial previa episódios curtos, moldados ao formato típico das revistas semanais europeias, como Tintin e Spirou. O projeto foi oferecido à revista Il Giornalino, que o recusou. Apenas em 1979 a série veria alguma luz, publicada pela Supergulp — e mesmo assim de maneira incompleta, já que a revista foi cancelada após lançar apenas dois dos quatro episódios planejados. Castelli ainda tentou emplacar a ideia na revista Zack, desta vez com o protagonista rebatizado provisoriamente de Martin Mystère, mas novamente não obteve sucesso.


Diante das recusas, Castelli reformulou profundamente o projeto. Abandonou o formato de episódios curtos, transferiu a arte para o desenhista Giancarlo Alessandrini e apresentou a nova proposta à Sergio Bonelli Editore. Embora o padrão editorial da Bonelli fosse trabalhar com histórias de 96 páginas, Castelli pretendia algo mais conciso, com apenas 64. Como solução intermediária, escreveu uma aventura de 128 páginas, estruturada em duas partes, batizada de “A Vingança de Rá”.

Em 1981, com o projeto finalmente aprovado e próximo de chegar ao público, Castelli decidiu alterar novamente o nome do protagonista. Considerava Martin Mystère apenas provisório e, segundo ele, difícil de pronunciar. A escolha recaiu sobre Doc Robinson, com “Doc” funcionando como uma homenagem direta a Doc Savage. Foi sob esse nome que a série começou a ser divulgada em revistas especializadas e chegou inclusive a ganhar uma prévia na feira de quadrinhos de Balerna, na Suíça.

Em mais uma reviravolta criativa, Castelli decidiu colocar “A Vingança de Rá” em segundo plano e elaborar uma nova história que serviria como verdadeira apresentação de Doc Robinson ao público. Durante esse processo, abandonou-se definitivamente a ideia inicial das 64 páginas, adotando-se o formato tradicional de 96 páginas da Bonelli. As 32 páginas adicionais foram distribuídas ao longo da narrativa para ajustar o ritmo e reforçar a introdução do personagem. Outra mudança relevante dizia respeito ao cenário: se na concepção original o herói era um inglês baseado em Londres, agora ele se tornava um nova-iorquino, deslocando o eixo da aventura para os Estados Unidos.

Às vésperas do lançamento, um imprevisto editorial quase frustrou a nova identidade do herói: foi lançada na Itália uma revista de quadrinhos denominada, ironicamente, “Robinson”. Diante da coincidência desconfortável, os autores decidiram abandonar o nome recém-escolhido e retornar ao título anterior. Assim, em abril de 1982, a edição de estreia finalmente chegou às bancas italianas sob o nome de Martin Mystère.

A primeira aventura, “Os Homens de Negro”, seria posteriormente republicada diversas vezes. Além da edição original de 1982 — conhecida no Brasil pela publicação da Editora Globo nos anos 1980 e pela versão mais recente da Editora 85 (que pode ser adquirida nesse link) —, a história ganhou ainda uma reimpressão na coleção Tutto Mystère, lançada aqui pela Editora Record em 1991.

As alterações entre as versões não são profundas, mas chamam atenção. Na reedição da coleção Tutto Mystere, alguns letreiramentos e balões foram modificados e determinados quadros foram redesenhados. Um exemplo curioso é a cena em que Martin usa o computador: na edição original aparece algo semelhante a um CD, enquanto na versão revista o objeto é substituído por um disquete de 3 ¼, tecnologia mais condizente com a época da reimpressão. Outro caso é o acesso ao mosteiro: originalmente feito por meio de um cesto içado, ele se transforma numa grande escadaria na versão de Tutto Mystere.

Quanto à terceira versão, publicada na edição de bolso “Oscar Mondadori: Os Mundos Perdidos de Martin Mystère”, não há muita clareza sobre todas as alterações. Por se tratar de um formato compacto, é provável que a história tenha sido reorganizada para se adequar às exigências editoriais desse tipo de publicação. Sabe-se, ao menos, que uma longa sequência foi redesenhada.

A versão original de Doc Robinson, concebida com 64 páginas, acabou se perdendo ao longo do tempo. No entanto, graças a um antigo roteiro e a algumas fotocópias remanescentes, foi possível reorganizar a obra. Nessa reconstrução, Castelli removeu as 32 páginas que haviam sido acrescentadas posteriormente e restaurou elementos da concepção inicial, incluindo a volta do cenário para Londres em vez de Nova Iorque. A primeira encarnação de Doc Robinson também contava com uma capa distinta, descartada na época por ser considerada excessivamente macabra (!)

Essa nova versão foi publicada no número 320 da edição italiana de Martin Mystère, em abril de 2012, e permanece como um objeto bastante curioso dentro da longa trajetória do personagem. Não acrescenta elementos inéditos à cronologia — e, na verdade, essa nunca foi sua finalidade. Trata-se antes de um exercício de estilo, uma reconstrução arqueológica de um momento embrionário da série, revelando como Castelli imaginava seu herói antes de todas as transformações que o tornariam o “Detetive do Impossível”. Na edição nº 1 da nova coleção da Editora 85, que organiza as aventuras em ordem estritamente cronológica, essa história aparece deslocada no tempo, incluída como extra nas páginas finais: uma peça de bastidor que, embora não mude nada no cânone, enriquece o entendimento do processo criativo por trás de Martin Mystère.

De certa forma, essa reconstrução tardia funciona quase como as célebres — e às vezes infames — director’s cuts do cinema. Não porque traga cenas inéditas capazes de transformar a narrativa, mas justamente pelo contrário: ao resgatar um estágio preliminar da criação, ela expõe o processo mais do que o produto final. Assim como versões alternativas de filmes que surgem décadas depois apenas para revelar intenções originais, hesitações criativas ou caminhos abandonados, este “Doc Robinson” recuperado não pretende substituir nada; apenas convida o leitor a enxergar o personagem por um prisma diferente. É um lembrete de que até o “Detetive do Impossível” nasceu de muitas tentativas — e que, às vezes, o que fica de fora da obra é tão revelador quanto o que chega ao público.

Como curiosidade, existe uma releitura da historia "Operação Arca" (Martin Mystère 3) feita por um fà clube do personagem. Detalhes podem ser encontrados aqui nesse link. Para mais Martin Mystere, abaixo o link de outros 2 textos recentes aqui no Blog:

Martin Mystère

Docteur Mystere 



quarta-feira, 29 de outubro de 2025

LUNA


Quem gosta de Velvet Underground, Talking Heads, Modern Lovers, Television ou Mazzy Star deveria conhecer o Luna — se ainda não conhece. É uma daquelas bandas que parecem nascer das cinzas de outras: melodias frágeis alternando com ruídos desconcertantes, sempre privilegiando ideias em vez de virtuosismo. O Velvet é a referência mais óbvia, mas cada suspiro de Dean Wareham também carrega a sombra de Tom Verlaine.

O Luna foi uma das vozes mais consistentes da cena nova-iorquina dos anos 90, com suas canções tristes, irônicas, emocionais. Surgiu em 1991, logo após o fim do Galaxie 500, e seguiu o fio subterrâneo do punk sessentista revisitado pelo Velvet nos anos 80. Lunapark (1992) abriu caminho com faixas como Slash Your Tires e I Can’t WaitBewitched(1994) trouxe Sean Eden à guitarra e, como bênção, a presença de Sterling Morrison em Great Jones Street e Friendly Advice. Em 1995, Penthouse consolidou a reputação da banda, com Tom Verlaine e Laetitia Sadier entre os convidados.

Vieram depois Pup Tent (1997) e The Days of Our Nights (1999). Este último manteve a verve velveteana em faixas como Dear Diary e Superfreaky Memories, mas também deu espaço a ironias afiadas em covers improváveis: Sweet Child O’ Mine, do Guns N’ Roses, e Neon Lights, do Kraftwerk, ambos em arranjos guitarrísticos. “Não sou fã do Axl Rose. O Guns acho horrível como banda, mas essa música é ótima, não dá para negar. Pra falar a verdade nem íamos colocar a versão no disco, mas acabamos cedendo para agradar a gravadora”, disse Dean, sem rodeios.

Dois anos depois, sua vida seria atravessada pelo horror. Dean morava perto do World Trade Center e assistiu ao 11 de setembro de sua janela. “Eu estava tomando café e olhando pela janela, até perceber um monte de gente em cima de um prédio vizinho olhando para a mesma direção. Comecei a ouvir sirenes, fiquei curioso e desci à rua. Foi quando vi uma das torres pegando fogo. Peguei o metrô e, quando saí, as duas estavam em chamas. Parei e fiquei olhando aquele espetáculo horrível.”

O detalhe mais cruel: em 1º de agosto de 2001, dia de seu aniversário, o Luna havia sido uma das últimas bandas a se apresentar no térreo do WTC. “Eu conheço pessoas que trabalhavam no WTC. Nem dá para acreditar que vi o prédio ruir. É estranho termos feito um dos últimos shows lá, no dia do meu aniversário. O show foi ótimo… não dá nem para acreditar que depois vi o prédio desabar. Foi uma coisa muito bizarra. Não consigo acreditar nisso. Foi uma das coisas mais bizarras que já aconteceu no mundo.”

Poucos dias depois, a tragédia atravessava oceanos. Em 26 de setembro de 2001, o Luna tocou em São Carlos, no interior de São Paulo, com abertura dos cariocas da Pelvs. O baixista Justin Harwood já não fazia parte da banda, substituído por Britta Phillips — atriz e dubladora do desenho Jem and the Holograms. Foi dela que ganhei o recém-lançado Luna Live, em versão brasileira dupla, sua estreia na formação. Naquele momento, porém, eu só conhecia The Days of Our Nights.

E foi justamente por isso que aquele show virou uma espécie de rito de passagem. Cada música que não vinha da minha memória, mas surgia ali pela primeira vez, tinha a força de uma revelação. 4th of July entrou com uma linha de guitarra cintilante, lenta e cortante como uma lâmina enferrujada, e eu senti como se estivesse vendo a cidade se encher de fumaça. Season of the Witch apareceu em clima hipnótico, quase ritual, e foi impossível não sentir o peso daquele título poucos dias depois do 11 de setembro. Chinatown soava como um passeio noturno por ruas úmidas, luzes refletidas no asfalto; Tiger Lily era um sussurro doce que parecia deslizar entre os ombros do público, deixando cada um sozinho dentro de si.

E então Friendly Advice: Dean a apresentou — “Essa música não está lançada em sua versão original no Brasil, mas pode ser encontrada no Luna Live, gravado em Washington e Nova Iorque e lançado por aqui” —, e as guitarras construíram um arco melódico que parecia nunca acabar. O momento mais delicado veio com o cover de Bonnie & Clyde, de Serge Gainsbourg, com Britta assumindo o papel de Jane Birkin. Sua voz soava frágil, quase tímida, mas era justamente essa fragilidade que arrepiava.

No palco, Dean mantinha a postura blasé, como quem mal se importa, mas as melodias cresciam em camadas, erguidas como frágeis catedrais de melancolia. O contraste era inevitável: em um pequeno barzinho na avenida principal de uma cidade universitária do interior paulista, aquelas músicas carregavam ainda o eco do caos recente de Nova Iorque. Desde então, nunca mais ouvi o Luna sem lembrar daquela noite em São Carlos — um instante em que a música deixou de ser apenas som e se transformou em revelação íntima diante do absurdo da História.