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domingo, 12 de outubro de 2025

SOMOS ROCK


Já me cansei de festivais. Não tenho mais corpo, nem idade para isso. Hoje em dia, a sensação é que você vai muito mais pela “experiência” coletiva do que pelo show em si. Talvez por isso nunca tenha me seduzido o João Rock, em Ribeirão Preto. O line-up até tinha bons nomes, mas eram bandas que eu já tinha visto em dias melhores, misturadas com outras que pouco me interessavam. E quando interessavam, eu preferia ver em show fechado, menor, com menos suor de desconhecido encostando no ombro.

Mas aí veio o Somos Rock de 2015. Um festival em comemoração aos 40 anos da 89 FM, autointitulado "A Radio do Rock" e que prometia nove grandes nomes do rock nacional dos anos 80 e 90, praticamente a trilha sonora da minha infância e adolescência. Na verdade eram onze atrações, mas estou ignorando duas exceções no cartaz que não me fariam nunca sair de casa..

O problema foi a logística. Eu não estava disposto a encarar São Paulo e depois voltar dirigindo de madrugada. Resolvi então comprar uma excursão. Ingenuidade minha achar que seria “tranquilo”. Faltando dois dias para o embarque veio a confirmação do horário: saída às 2h30 da manhã em Jaú, cidade vizinha, o que já me obrigava a sair de casa de carro em plena madrugada. Mas vá lá: era cedo, mas fazia sentido, já que o ônibus ainda passaria por mais três cidades recolhendo gente.

Naturalmente, dormi mal. Fui para a cama cedo, pouco depois das 21h, mas o sono não veio fácil. Acordei às 23h para ir ao banheiro, depois voltei a dormir até quase 1h. Às 2h já estava em Jaú, meia hora antes da partida. O horário era impreterível: 2h30. Ou melhor, quase. Porque às 2h40 ainda faltavam duas passageiras. O ônibus partiu mesmo sem elas. Até que, no meio da estrada, o motorista parou e — adivinhe — lá vieram as duas correndo, jurando que no site constava saída às 3h. Pode até ser, mas havia um e-mail com anexos detalhados sobre os horários. Só que, no Brasil, manual de instruções é ficção científica. Resultado: saímos de Jaú com meia hora de atraso.

Chegamos a Bauru por volta das 4h. O cronograma já previa atrasos e percalços, então, em tese, ainda estávamos dentro do tempo. A volta, combinada para um posto de gasolina a poucos quarteirões do local do show, seria o teste final de convivência. E falhamos de novo. Duas mulheres se perderam — mesmo sendo em linha reta. O guia havia repetido mil vezes: “marquem referências, olhem bem o trajeto”. De nada adiantou. No ônibus, a instrução era esperar do lado de fora do posto para tirar uma foto antes de entrar. Três ou quatro ignoraram solenemente e entraram direto. Mais atraso. Perdemos quase uma hora parados em São Paulo por pura falta de atenção. O ser humano em excursão é sempre um estudo de caso.

Por sorte, o show acabou quase uma hora antes do previsto e o prejuízo não foi catastrófico — apenas aquele stress básico de quem tenta viver em comunidade.

E então, finalmente, vamos aos shows.

O FESTIVAL

Chegamos ao local dos shows às 10h. Os portões só abririam às 11h, então ficamos ali, feito gado no curral, esperando a boa vontade da produção. Quando enfim entramos, o espaço ainda estava praticamente vazio. Era possível andar sem esbarrar em ninguém, chegar tranquilo nas barracas e até comprar alguma coisa sem fila. Um luxo temporário.

Como já tínhamos parado às 7h30 num posto da estrada e feito um café da manhã que custou o equivalente a um mês de pó em casa (sem exagero), dispensei comida. Fui direto ao banheiro — ainda limpo, um milagre digno de registro — e depois garanti um chope e uma cerveja. E foi aí que fiz a pior escolha: deixei os salgadinhos e bolachas na mochila, dentro do ônibus. Não por falta de experiência — já fui a inúmeros shows — mas por um delírio temporário de achar que não faria falta.

O espaço tinha dois palcos, um do lado do outro, esquema pensado para que, quando um show acabasse, o próximo já começasse sem demora. Ótimo para quem foi pela música — e, no meu caso, significava que dificilmente sairia do lugar. Se eu me afastasse, não teria como voltar para o ponto estratégico que achei: bem no meio dos dois palcos, um pouco distante da grade, mas perfeito para acompanhar tudo sem precisar virar atleta de maratona. O terreno era uma desgraça, cheio de areia e irregular. No centro havia uma comprida base de plástico que separava os dois palcos, e foi em cima dela que fiquei, como quem encontra um oásis em meio ao deserto, protegendo a coluna de uma futura hérnia.

Para bebidas, até que funcionava: ambulantes circulando, acesso fácil. Mas comida era outra história. Havia umas três barracas mal distribuídas pelo evento, concentrando espetinhos, lanches e pastéis. E só. Nada daquela pompa de “experiência gastronômica” que festival moderno adora inventar. O cardápio era direto: coma ou passe fome. Eu escolhi a segunda opção. Às 11h30, quatro horas depois do café, ainda estava abastecido. Podia ter comprado alguma coisa para garantir, mas sinceramente não me animei. O objetivo era ver shows, não disputar fila de pastel. Mesmo assim tinha a experança de sair no meio de um show menor.

1- RAIMUNDOS



O Raimundos foi escalado para a ingrata função de abrir o festival ao meio-dia, com o sol martelando a cabeça e ainda assim arrastando um público considerável. No palco, a formação atual que se consolidou ao longo das provações: Marquim, que assumiu a guitarra após a saída de Rodolfo; Jean Moura, ex-roadie convertido a baixista oficial depois da morte de Canisso; e Caio Cunha, dono das baquetas há quase duas décadas. À frente, Digão — o último elo da formação original e guardião do nome Raimundos, sustentando a marca mesmo depois da troca traumática de vocalista. Se a longevidade do grupo pode ser questionada, o repertório não: eles têm hits suficientes para segurar qualquer plateia por uma hora sem baixar a energia.

O show foi pesado — até mesmo as baladas que um dia renderam sucesso radiofônico soaram com vigor, distantes das concessões comerciais do passado. Não por acaso, Rodolfo justificou sua saída, anos atrás, alegando que já não se via interpretando letras adolescentes, que soariam incompatíveis com sua nova vida espiritual. É curioso notar que essas mesmas letras, que hoje poderiam ser alvos de críticas, seguem entoadas com devoção pelos fãs, indiferentes ao sol a pino e à passagem do tempo.

De onde eu estava, não se ouviram provocações à postura política da banda. Longe da grande mídia, o Raimundos deixou para trás as imposições de gravadoras — como a obrigatória versão de 20 e Poucos Anos, de Fábio Jr. — que, embora desdenhadas por puristas, foram decisivas para colocar o grupo, ainda que brevemente, no mainstream, coisa que outras bandas pesadas da época, como o Dead Fish, jamais conseguiram.

Se o peso das guitarras foi inegável, a regulagem de som não colaborou: vocais mal equilibrados e instrumentos por vezes embolados. Nada, porém, que atrapalhasse o entusiasmo de quem já estava ali cedo — público que não veio por acaso, mas para ver os caras. O Raimundos pode até não ser mais a banda incômoda e disruptiva dos anos 90, mas sobreviveu ao que parecia impossível: a troca de vocalista, a morte de um integrante fundamental, a desconfiança da crítica. E se há uma certeza que permanece, é que no palco eles ainda sabem honrar o peso do próprio nome.

2- NANDO REIS


Mal o Raimundos encerrou no palco 1 e, pontualmente às 13h, Nando Reis já surgia no palco 2 — sem atrasos, sem enrolação. A seu lado, uma banda afiada: Eduardo Schuler na bateria e o filho Sebastião Reis nos violões (ambos do Colomy), além do sempre fiel Walter Villaça nas guitarras. Ou seja, Nando já entrava em campo com o jogo ganho: dono de um repertório que sustentaria horas de apresentação, em apenas uma hora não precisou de muito esforço para conquistar a plateia.

O problema, porém, foi o som. E aqui não dá para culpar a correria de festival, já que tanto Raimundos quanto Nando tiveram tempo de sobra para passagem. Aliás, quando cheguei por volta das 10h, o próprio Nando estava testando voz e violão. Ainda assim, o vocal soava fanho, estridente, como se alguém tivesse decidido equalizar a poesia em AM. Talvez não tenha sido a percepção de todos, mas eu estava justamente na frente de um conjunto de caixas que me atirava aquilo direto nos ouvidos — azar da geografia.

Felizmente, o repertório segurou a festa. O show abriu com Marvin, clássico dos Titãs, e seguiu por uma seleção de sucessos solo. Teve também a sempre obrigatória homenagem a Cássia Eller, que além de amiga foi intérprete de alguns dos maiores hits de Nando — e, convenhamos, também ajudou a impulsionar a carreira solo dele. Isso sem esquecer que Marisa Monte e Cidade Negra já haviam colocado seu nome no mapa das rádios antes mesmo dele assumir o protagonismo.

3- SUHAI

Talvez o nome mais estranho da escalação: quase ninguém sabia quem diabos era Suhai. Um cara? Uma banda? Um codinome secreto? Dias antes do festival, movido pela curiosidade, fui ao Deezer, ouvi duas músicas e desisti ,

Em meio a uma lista de medalhões do rock nacional, como surgiu esse nome desconhecido? Não faço ideia. Uma coisa é certa, tem um produtor influente e forte, mas a explicação provavelmente passa por favores de bastidores ou algum investimento generoso. Rock, afinal, também se move a acertos de contas.

Foi nesse momento que decidi sair para comer. Doce ilusão: o festival inteiro teve a mesma ideia. A fila era quilométrica, e se eu entrasse nela perderia o próximo show praticamente inteiro. Resultado: voltei para meu posto estratégico, sentei e deixei o som do Suhai vir até mim. Até agora não sei se era uma banda ou um cantor solo.

O que ouvi não ajudou a esclarecer. As músicas autorais lembravam um sertanejo universitário travestido de rock. Entre um acorde e outro, coube até uma cover de Cazuza para tentar animar o público. Mas o que vi foram conversas paralelas, celulares levantados e uma plateia mais interessada em matar o tempo do que prestar atenção.

A boa notícia é que a apresentação durou apenas meia hora. Suhai se despediu cedo e, involuntariamente, prestou um serviço: adiantou o cronograma do festival.

4 - IRA !


Mais um bom — e esperado — show. Desta vez, celebrando os 25 anos do Acústico MTV. Já perdi a conta de quantos shows do IRA! assisti ao longo da vida, mas lembro perfeitamente do primeiro: Lençóis Paulista, por volta de 1997. A banda vivia então um ostracismo pesado, depois do brilho dos anos 80 e de uma sequência de álbuns injustamente ignorados (Meninos da Rua PauloMúsica Calma para Pessoas NervosasSete). Ignorados pelo público, diga-se — porque eu, na época, ouvi todos até gastar o encarte.

A verdade é que, até o Acústico MTV, o IRA! sobrevivia de pequenos shows pelo interior. Foi o projeto da MTV que os catapultou de volta à primeira divisão do rock nacional. E ironia das ironias: músicas que haviam sido enormes fracassos, como Eu Quero Sempre Mais e Girassol, viraram hits radiofônicos. Não porque o público tivesse mudado de gosto da noite para o dia, mas porque, até então, faltara o empurrão das gravadoras e das rádios — e convenhamos, o público em geral não sai à caça de novidades; prefere consumir o que lhe é servido. Com o Acústico, veio a engrenagem de marketing e, de repente, aquelas canções ganharam a vitrine que sempre mereceram.

O fim viria em 2007, com Invisível DJ — um disco interessante, sim, mas que nunca encontrou seu brilho.  (escrevi uma crítica na época, aqui).   Depois, vieram brigas, processos e acusações dignas da Contigo. O retorno só aconteceu anos depois, com um longo e penoso mea culpa entre Nasi e Edgard Scandurra. Voltaram, mas sem Gaspa e André Jung— metade da formação original perdida pelo caminho. Em uma entrevista que fiz com Jung  (link aqui),, ficou claro que mágoas e ressentimentos ainda pairam no ar, como uma nuvem que não se dissipa.

Mas voltemos ao presente. O show foi, sim, excelente — ainda mais com um repertório à prova de falhas. Em apresentações curtas, o IRA! é imbatível. Consegui ver ao vivo músicas que nunca tinha testemunhado, entre elas Vida Passageira. Uma bela canção, sem dúvida, mas que abriga uma das piores frases já escritas no rock nacional — “onde a lua se parece com a bandeira da Turquia” — e obriga Nasi a se contorcer no microfone, como se fizesse aeróbica para caber no compasso. Ainda assim, bela canção.


E falando em Nasi, a voz já não é mais a mesma, mas neste show estava em forma bem melhor do que no desastre dos acústicos do ano passado. O ponto alto veio com Núcleo Base, que em 2025 ganhou contornos ainda mais políticos: Nasi passou o show inteiro fazendo sinais de “Anistia Não” em direção à plateia. Não sei se houve provocações diretas, mas seus sorrisos irônicos deixavam claro que havia ali um diálogo silencioso — e tenso.

De qualquer forma, foi um ótimo show. O IRA! pode ter atravessado crises, separações e reconciliações, mas segue com a mesma capacidade de traduzir, em música, as contradições do país — com raiva, lirismo e guitarras. E pensar que tudo começou, pra mim, lá em 1997, em Lençóis Paulista, no velho Marimbondo, quando a banda parecia um fantasma do passado. Quase trinta anos depois, ainda estou aqui — e eles também. E isso, num país que trata memória como coisa descartável, já é quase um milagre.

5 - BIQUINI CAVADÃO


Durante os anos de ouro do rock nacional, nos 80, o Biquini Cavadão jamais foi escalado para a “primeira divisão”. Tinha seus momentos radiofônicos com Tédio e Timidez, mas nunca chegou ao patamar de ParalamasTitãs ou Legião Urbana. E, ironicamente, foi na ressaca do gênero, já nos 90, que vieram os maiores hits da carreira: Zé NinguémVento Ventania e uma cover esperta de Chove Chuva, de Jorge Ben. Depois vieram Janaína e, em menor escala, Dani — e, sem perceber, o Biquini se tornou uma daquelas bandas que o público talvez não idolatre, mas sempre reconhece quando começa a tocar.

Na virada dos 2000, repetiram a cartilha do Capital Inicial e do IRA! — o auge tardio. Só que, se para os outros a salvação veio via o marketing dos acústicos MTV, o Biquini seguiu por outro caminho: virou uma espécie de banda de baile de luxo, abastecendo rádios com versões dançantes de clássicos dos anos 80, embaladas no projeto 80.

A crítica, claro, torceu o nariz. Mas a crítica especializada brasileira, convenhamos, há muito se especializou em falar mal do rock nacional — reverencia o virtuosismo de um Scandurra, mas faz cara feia diante do fã dos Engenheiros do Hawaii. Com o Biquini foi igual: diziam que faziam “pop vazio”, como se cantar sobre adolescência e tédio fosse um crime de lesa-pátria cultural.

Só que sejamos justos: o Biquini nunca quis ser filósofo da juventude. Queria divertir — e nisso, foi imbatível. A discografia guarda pérolas pop com melodias afiadas, arranjos limpos e produção eficiente. Mesmo os discos mais recentes escondem faixas inéditas que poderiam muito bem tocar em rádio, se ainda houvesse espaço para algo além da mesmice algorítmica. Os covers, regravados até o limite, garantiram sobrevida e uma fidelidade de público rara: shows lotados, estrada firme e até feitos improváveis — como lotar a praça central de Bariri na década passada. Poucos nomes do rock nacional podem se gabar de algo assim.

No centro de tudo está Bruno Gouveia, um dos grandes frontmen do país — carismático, preciso e dono de um controle absoluto da plateia. Seus shows são pura catarse: o público canta junto, pula, ri e esquece o resto da vida por uma hora. Foi exatamente assim no Parque Villa-Lobos: sob o sol impiedoso da tarde e o cansaço já rondando, Bruno e seu Biquini (perdão, não resisti) conseguiram levantar a multidão.

Não é filosofia. Mas quem precisa de filosofia quando se tem um refrão gritado a plenos pulmões, falando de tédio?

6 - PATO FU

Soube tarde demais que o Pato Fu tinha passado por Bauru. Uma pena. É uma daquelas bandas que, ao vivo, mostram camadas que o rádio nunca revelou — e que lembram o quanto a meiguice, quando levada a sério, pode ser uma forma de subversão. Quem reduz o grupo às baladinhas de fim de tarde dos anos 90 ignora o tanto de peso, ironia e invenção que eles carregam por trás das melodias doces.

O começo foi meio desastroso, e nem isso tirou o encanto. Fernanda Takai, visivelmente desconfortável, acenava para os técnicos como quem pede ajuda de um bote salva-vidas em alto-mar. Logo depois da primeira música, explicou: o retorno de palco tinha falhado. Engraçado — da plateia, o som parecia perfeito. Aos poucos, a sintonia foi voltando, como se a banda respirasse junto novamente, e o show tomou corpo. Quando tudo se encaixou, veio o prêmio: o carisma calmo de Fernanda, o humor de John Ulhoa, a elegância magnética de Ricardo Koctus no baixo, e, claro, o prazer quase doméstico de ver Xande Tamietti de volta à bateria — uma presença que, mesmo anunciada há tempos, ainda desperta aquele sorriso de quem reencontra um amigo antigo.

No setlist, os grandes clássicos estavam todos lá: “Canção pra Você Viver Mais”“Depois”“Sobre o Tempo” e o cover sempre irresistível de “Ando Meio Desligado”, dos Mutantes — que continua soando como uma ponte entre gerações de malucos criativos. Entre os hits, surgiam pérolas menos conhecidas, mas igualmente encantadoras, como “Gol de Quem?” (video aqui) e “O Filho Predileto do Rajneesh”, lembrando ao público que a banda nunca foi apenas sobre ternura — mas também sobre estranheza, ironia e experimentação.


O ponto alto, pra mim, veio com “Capetão 666 FM”. Uma pequena epopéia rock-pop-fu — caótica, divertida e absolutamente única. Pena que tocaram só a primeira parte, cortando o clímax antes do fim, e emendando direto em “Uh Uh Uh Lá Lá Lá Ié Ié”, encerrando o show num clima de festa leve e redentora.

Foi, de longe, o show mais inventivo e sincero do festival — aquele que faz a gente lembrar que nem toda doçura é inocente, e que o Pato Fu sempre foi isso: gentil na forma, provocador no conteúdo, e deliciosamente fora da casinha.

7- ULTRAJE A RIGOR

Alguém da plateia arriscou a provocação, mas mal conseguiu terminar a palavra “anistia” — o “não” foi instantaneamente soterrado pelo riff inicial de “Ciúme”. Roger olhou para os companheiros com aquele sorriso nervoso de quem já esperava o golpe. Um gesto cúmplice e automático, típico de quem aprendeu há décadas que provocação faz parte do ofício.

Ultraje a Rigor tem em “Nós Vamos Invadir Sua Praia” um dos discos mais sólidos — e paradoxais — do rock nacional. Onze faixas, dez hits. “Se Você Sabia” e “Zoraide” ficaram no banco de reservas, mas o resto é um desfile de clássicos. Um daqueles raros álbuns que se ouve do começo ao fim sem vontade de pular nada. O sucessor, “Sexo”, repetiu a façanha em menor escala: menos hinos, mas ainda quatro grandes canções que sobrevivem no imaginário coletivo, tocadas à exaustão em rádios, bares e ressacas.

O brilho, claro, foi se apagando com o tempo. Os anos 90 fecharam as portas do mainstream para quase todo o rock brasileiro — mas não para o público do interior, que continuou recebendo o Ultraje como se ainda estivéssemos em 1987. Mesmo quando o som já não estava nas paradas, os palcos seguiam lotados. E na virada dos 2000, Roger ainda cravou mais um hit, “Nada a Declarar”, com seu refrão inflamado que reciclava a velha verve debochada de “Filho da Puta” e “Chiclete”. Em meio ao marasmo sonolento da música brasileira da época, era quase um ato de resistência — ainda que disfarçado de piada.

No festival em questão, o clima era de pólvora contida. No mesmo lineup, Raimundos e Ultraje a Rigor — duas bandas cujos líderes, Digão e Roger, colecionam desavenças com meio mundo do rock nacional, agora turbinadas por suas posições políticas nada discretas. Some-se a isso o IRA!, que ocupa o extremo oposto do espectro ideológico, mas com a mesma agressividade verborrágica, e o backstage parecia mais um campo minado do que um camarim.

No fim do show, Roger tentou posar de diplomata. Anunciou ao microfone que ele e Edgard Scandurra haviam feito as pazes — “ele veio me pedir desculpas”, disse, com aquele ar de satisfação passivo-agressiva que já virou marca registrada. E completou, com a ironia que só ele acredita ser elegância: “Preferia que tivesse sido em público, mas tá valendo.”

O típico Roger: corrosivo, autoconfiante, incapaz de deixar a provocação morrer. O mesmo garoto de 1985 — só que agora tocando para um país que parece ter esquecido que o deboche também era uma forma de lucidez.

8- TITÃS

Confesso: esse era o show que eu planejava usar como desculpa para finalmente comer alguma coisa. Achei que, por ser lotado, não faria tanta diferença sair por uns minutos. Mas minha esposa me desestimulou: se saíssemos dali, onde tínhamos conquistado um ponto perfeito, jamais conseguiríamos voltar para ver os últimos shows. E como não sou desses caras de pau que chegam atrasados e empurram todo mundo para se meter na frente, acabei concordando.

A expectativa para os Titãs não era das maiores. Os últimos álbuns foram um desfile de canções fracas, e a banda hoje é só uma fração do que já foi — sobraram apenas três. Branco Mello, infelizmente, perdeu a voz para problemas sérios de saúde, e eu já havia assistido recentemente à turnê de reunião, aquela sim memorável.

Mas a sorte esteve do nosso lado: o formato de uma hora fez com que o repertório fosse certeiro. Só tropeçaram em Apocalypse Só, com aquele coro de crianças que já nasce irritante, mas o resto foi pancada atrás de pancada, clássicos tocados com peso e vigor. Até Marvin apareceu de novo, a segunda versão do dia, depois de Nando Reis mais cedo. E claro, no final não podia faltar Epitáfio, o maior hit dos Titãs neste século. Eu, particularmente, não suporto a canção, mas era inevitável — se até na turnê de reunião, centrada na fase em que todos estavam no grupo, ela entrou, aqui não seria diferente.

No fim, o show se mostrou muito melhor do que minhas expectativas deixavam supor. Tocaram com garra, o público cantou como se fosse a última vez, e até eu me vi contagiado. Para quem pretendia sair para comer, acabei engolindo tudo ali mesmo: riffs, letras e a sensação de que, quando os Titãs querem, ainda são gigantes.

9- NENHUM DE NÓS

A “cota sulista” do dia ficou a cargo do Nenhum de Nós, outra banda com carreira sólida e um punhado de hits que resistem ao tempo. É verdade que depois dos anos 2000 não emplacaram nada de hits nacionais (apesar de ótimos discos que valem a pena), mas continuam entregando um show cheio de grandes canções.

Thedy Corrêa, com sua presença habitual, talvez não estivesse nos melhores dias de voz — acontece até nos pampas. Ainda assim, faixas como Eu CaminhavaCamila, Camila e a sempre festejada versão de Starman, do David Bowie (que muita gente ainda jura ser uma música original da banda), garantiram momentos de coro coletivo.

Aliás, foi justamente durante Astronauta de Mármore que Thedy resolveu exercer seu lado justiceiro: parou o show no meio para dar um belo esporro nos roadies do Paulo Ricardo, que estavam testando a bateria bem na introdução. Para quem estava na plateia já era incômodo; para quem estava no palco, com retorno direto no ouvido, devia ser de enlouquecer. Foi quase uma performance paralela: Bowie no céu, roadies no chão e Teddy no meio, segurando a bronca.

10 - PAULO RICARDO


Não sabia exatamente o que esperar desse show. Não do que eu queria — isso estava claro —, mas do que poderia acontecer. Meu receio era encarar um Paulo Ricardo da fase solo “brega romântica”, quando tentou ser um Roberto Carlos. Aliás, foi a última coisa que soube dele, mesmo sem nunca ter acompanhado aquele período.

O RPM foi minha primeira paixão no rock nacional. Eu tinha uns 9 ou 10 anos quando o primeiro disco invadiu as rádios sem dó. No meu aniversário de 11, tinha certeza absoluta de que ganharia do meu tio Ari o recém-lançado Rádio Pirata ao Vivo. Que decepção quando, no dia, ele apareceu com um single do Roupa Nova com a música Dona. Um banho de água fria. Claro, depois ouvi aquele compacto tantas vezes que arranhei o vinil, mas na hora foi frustrante.

Ainda assim, foi esse mesmo tio que me levou ao show do RPM em Bauru. Não lembro o local — devia ser pequeno para aquele evento. Pode ter sido a Luso ou algum clube parecido. Mas sei que foi o mesmo espaço onde, algum tempo antes, vi o Barão Vermelho ainda com Cazuza. Esse último não me empolgou tanto quanto o RPM naquela época.

Mais tarde, outra tia me levou às Lojas Americanas em Bauru — naqueles tempos, o paraíso para quem gostava de música — e me deu o recém-lançado Quatro Coiotes. O disco não teve nem sombra do sucesso dos anteriores, mas eu ouvi demais, mesmo sem o apelo pop que a idade pedia. Partness virou uma das canções mais tocadas da minha vida naquela fase de descoberta.

Também lembro de um domingo em que acompanhei o mesmo tio até Jacuba, distrito de Arealva, onde ele ia jogar futebol. Fiquei no carro ouvindo a fita do Rádio Pirata ao Vivo. Isso já em 89/90 — foi uma redescoberta daquele álbum que nunca ganhei. Nessa época eu ainda não corria atrás de discos: ouvia o que tinha em casa e, na TV, nunca fui muito de programas musicais. Isso só mudou depois dos 15 anos, quando o interesse se firmou.

Tudo isso para chegar até o show do Paulo Ricardo. Qualquer receio desapareceu nos primeiros acordes de Rádio Pirata. O golpe da nostalgia veio forte. Louras Geladas logo em seguida, com a mesma potência. O clima deu uma caída com o cover chocho de Vida Real, e emendou com a atual Herói Made in Brazil — que tem toda a cara do velho RPM e deixa claro para quem é endereçada.


A grande surpresa da noite foi Juvenília. Não esperava por essa. E ainda teve a participação especial de Thedy Corrêa em A Cruz e a Espada — sem dúvida, um dos pontos altos do festival. Paulo Ricardo emendou depois um medley de cores: a chatinha Imagine fundida com One, do U2, e ainda uma citação de Strawberry Fields Forever. Pensei que puxaria London, London, do Caetano, aquela que o RPM fez virar deles, mas não veio. Uma pena. Pelo menos veio Flores Astrais, outra que o RPM apropriou com categoria. Mais um grande momento.

Já o cover em clima disco fora de epoca e sem inspiração de Pro Dia Nascer Feliz . Poderia ter escolhido qualquer outra, mas enfim. A compensação veio na reta final: Revoluções por MinutoAlvorada Voraz e Olhar 43 em sequência matadora, levando o show a um final catártico e energético.

Não havia como terminar melhor a noite. Mas ainda tinha mais um show.



11 TIJUANA

Nos primeiros anos da década de noventa, ainda na adolescência, o rock nacional era a minha grande paixão. De fora eu ouvia o que estava estourado: Guns N’ Roses, Faith No More, Nirvana, Red Hot Chili Peppers, Pink Floyd. Mas a coisa virou a partir de 95, já nos anos de faculdade. O nacional foi ficando em segundo plano e quem entrou com tudo foram Radiohead, Smashing Pumpkins, The Cure, The Smiths, Pixies, Luna, Velvet Underground, Belle and Sebastian, Bowie, Travis, Blur, Oasis, James, Meat Puppets, Dylan, Teenage Fanclub, Wilco e tantos outros que se acumulavam nas descobertas.

Do lado de cá, Skank, Raimundos e Pato Fu foram as últimas bandas brasileiras que realmente me interessaram. Depois disso, só os recifenses — Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre, Eddie, Mula Manca — me chamaram a atenção em momentos diferentes. Já Jota Quest, Charlie Brown Jr., CPM 22, Pitty, Detonautas… nunca me deram vontade de ouvir um disco inteiro. O que conheço é o que tocava por aí, sem escapatória. Tirando Charlie Brown e Pitty, não sei distinguir uma música do CPM 22 ou dos Detonautas. Até conheço, mas não sei de quem é o quê.

E aí veio o Tijuana. Era a banda que eu já tinha decidido abandonar sem dó para finalmente comer e ir ao banheiro. Mas resolvi ficar, pelo menos umas duas músicas, só para ver qual era.

Começaram bem: peso, fusão de rap com rock e ritmos brasileiros, uma energia que lembrava Planet Hemp. Mas já na segunda música achei que tinha visto o suficiente e fui comer, ouvindo de longe. Enquanto isso, o público que estava no Palco 2 se aglomerou em frente ao Palco 1, mas nem assim encheu: dava para andar tranquilo e até chegar perto do palco sem esforço.

Depois de quase 14 horas de jejum, almocei e voltei para a apresentação. Mas a vibe inicial já tinha evaporado. Atrás de mim, uma garota cantava algumas músicas com algo que talvez fosse emoção — ou só hábito — mas enfim, estava se divertindo.

No fim, reconheci uma: aquela do Tropa de Elite que todo mundo conhece. Para ser honesto, eu só sabia o refrão, então nem percebi de imediato. Foi a deixa perfeita. Antes que a multidão resolvesse sair junto, aproveitei e fui embora. O festival acabou, e eu ja estava acabado fazia tempo.


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

SAUDADES DA MINHA LEMBRANÇA: Quando o Rock era a Estrela

Saudades da minha lembrança foi o titulo de um livro que reune, no começo do século algumas crônicas que escrevia para jornais. Adoro esse titulo que algum tempo depois o cantor Nervoso deu por um zeigeist absurdo para o seu primeiro disco solo (Alias tem uma entrevista que fiz com o cantor nesse link)

Hoje não usaria mais como titulo do livro para nao parecer que roubei o titulo,  mas sem pudor de usar aqui no blog nessa serie de artigos onde pretendo rever alguns  textos que hoje acho bem amadores mas de alguma forma as ideias permanecem. Pretendo reescreve-los, tentando deixar mais contemporâneo e ao mesmo tempo que mudo o ponto de vista sobre algumas coisas. No final acrescento o texto original

Rock, Sexo e Gel de Cabelo: o Brasil dos 80 em 33 rotações

Foi nos anos 80 que as gravadoras brasileiras, sempre atrasadas mas nunca bobas, perceberam que o rock — esse estranho bicho de jaqueta e rebeldia — podia, sim, ser domesticado, enlatado e vendido em suaves prestações.
De repente, o que antes era subversão virou vitrine. O RPM, com teclados supersônicos e libido de arena, mostrou que dava pra lotar estádios com poesia de fotonovela. Blitz, Lulu Santos e a já veterana Rita Lee cuidaram do resto: o rock virou produto, trilha sonora de comercial de jeans e abertura de novela das oito.

E então veio a febre. A segunda metade da década foi tomada por uma explosão de bandas de pop-rock que achavam que podiam salvar o mundo com três acordes e um refrão de rima pobre. Muita porcaria (a maioria) invadiu as rádios, mas entre uma boy band de mullets e uma cantora de ombreiras, sobraram faíscas de talento: IRA!, Titãs, Ultraje a Rigor, Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana, Lobão, e outros nomes que a nostalgia insiste em canonizar. Havia também as preciosidades menores — Zero, Hojerizah, Replicantes, Cascavelletes, De Falla, Picassos Falsos — bandas que, ao menos, inconscientemente sabiam que nunca seriam grandes, e por isso mesmo foram melhores.

O cinema, claro, não deixaria o filão escapar.
Lael Rodrigues, espécie de Spielberg tropical do mainstream adolescente, dirigiu dois clássicos involuntários do gênero “rock de vitrine”. O primeiro, Bete Balanço (1984), é um delírio narrativo embalado a libido e penteado de mousse. O roteiro? Um fiapo: garota ingênua do interior vai ao Rio tentar a sorte como cantora.
Mas quem liga? Tinha sexo, coca-cola, Barão Vermelho com Cazuza e Débora Bloch transando com meio elenco. Tinha também Titãs, Lobão e até grupos com nomes que pareciam piada interna (Manhas e ManiasMetralhatxeka — sim, com “x”). Era o rock nacional em versão cinematográfica: desajeitado, histérico e irresistível.

Um ano depois, Lael voltava com Rock Estrela (1985), outra aula de como transformar um roteiro escolar em manifesto juvenil. Diogo Vilela repete o papel de cronista da cafonice e divide cena com Andréa Beltrão, Malu Mader, Vera Mossa (sim, a jogadora de vôlei), Guilherme Karam e Léo Jaime . A trama é uma reprise com outro figurino: rapaz do interior (de novo) vai ao Rio (de novo) e se divide entre o amor e a fama (adivinhe?).
Mas o elenco musical compensa: Metrô, RPM, Tokyo, Fito Páez (em versão proto-acústico MTV), Celso Blues Boy, La Torre, Vírus — e até “Os Melhores”, que ironicamente não eram.

Rever esses filmes hoje é um prazer culposo. Eles condensam tudo o que havia de patético e encantador naquela década: o entusiasmo sem noção, o romantismo pós-ditadura, a crença de que a juventude mudaria o mundo com calça de lycra e guitarras de acrílico.

Lael, ja mais maduro, ainda fecharia sua trilogia do rock brasileiro com Rádio Pirata — título que dispensa explicações para quem viveu os anos 80. O filme, de 1987, é talvez o mais ambicioso (e o mais ingênuo) do trio: tenta misturar rebeldia juvenil, conspiração corporativa e amor em tempos de paranoia tecnológica — uma ficção científica à brasileira, feita com walkie-talkie, topete e boas intenções. 

Na trama, depois de descobrir uma fraude em um centro de processamento de dados — expressão que já entrega o tempo e o lugar —, um casal é falsamente acusado de assassinato. Fugindo em uma van, eles montam uma rádio clandestina para tentar mobilizar a opinião pública. É o gesto heroico típico de uma década em que se acreditava que um transmissor improvisado poderia mudar o mundo. O Final acredito eu causaria muita controvérsia hoje, mas a moral passou batida à epoca, assim como o filme.

Curiosamente, ao contrário de Bete Balanço e Rock Estrela — que usavam músicas homônimas como tema principal, repetidas à exaustão entre uma cena e outra —, aqui a canção que batiza o título nem aparece. Rádio Pirata, a música, ficou de fora. O tema do filme é Brasil, de Cazuza, lançada antes de virar trilha de novela e ainda fresca, ferida, antes de ser domesticada pelo horário nobre.

O resultado é uma mistura curiosa de thriller e videoclipe, movida por um entusiasmo quase adolescente. O roteiro tropeça, a moral da história pesa, mas há ali algo autêntico — um lampejo de idealismo, aquele mesmo que fazia os jovens da época acharem que o rock ainda era uma forma de resistência. Rádio Pirata encerra a trilogia como uma espécie de epitáfio otimista: o último suspiro de uma geração que ainda sonhava com liberdade, mesmo que o som viesse com chiado.

Areias Escaldantes é aquele tipo de delírio cinematográfico que só poderia ter nascido nos anos 80 — e ainda assim, situado num “futuro distante”: 1990. No enredo, um grupo de jovens terroristas tenta derrubar um governo fascista que domina o Brasil. O plano? Roubar bancos. A execução? Um desastre glorioso.

O elenco é um espetáculo à parte — e não necessariamente pelos motivos certos. Lá estão Catarina Abdalla (quem não se lembra da eterna Ronalda Cristina de Armação Ilimitada?), Chris Couto, futura VJ da MTV, Luiz Fernando GuimarãesDiogo Vilela (sim, ele de novo — onipresente e incansável), Neville de Almeida (!) e, veja só, TitãsUltraje a RigorLobão e os RonaldosJards Macalé… todos eles provando, com dedicação comovente, que são ótimos cantores — e atores apenas nas horas vagas.

E, claro, Cristina Aché. Como esquecer? Uma das minhas crushes absolutas da pré-adolescência — dessas que a gente via na tela e achava que o mundo adulto seria uma mistura de Rock Estrela com Armação Ilimitada. Ingenuidade bonita, como quase tudo que veio dos anos 80: exagerado, confuso, mas cheio de coração.O filme mistura estética new wave, figurino de videoclipe da Manchete e uma trilha sonora que poderia estar em qualquer especial de fim de ano da Globo. A direção parece não saber se quer fazer ficção científica, drama político ou desfile de moda distópico — e no fim entrega um pouco de tudo, sem pé, cabeça ou vergonha.

É ruim, claro. Mas é um ruim fascinante. Um sci-fi tropical que acredita piamente na própria seriedade, com efeitos dignos de uma convenção de microcomputadores e diálogos que fariam corar até um roteirista de novela das sete. Só que, no meio desse caos, há algo irresistível: uma autenticidade que o cinema de hoje, tão polido e previsível, raramente ousa ter.

Porque Areias Escaldantes pode não funcionar como filme — mas como cápsula do tempo, é um documento precioso: o Brasil tentando ser futurista com o orçamento de um comercial de sandália Havaianas e o entusiasmo de quem achava que o amanhã chegaria em VHS

Lembro de rever, já no fim do século, uma fita do Rock in Rio II (1991) e perceber que os anos 80 ainda não tinham acabado. As roupas, os cabelos, a pose de “somos o futuro” — tudo permanecia ali, firme, teimoso. Só com a chegada do Nirvana é que a década, enfim, deu seu último suspiro. O grunge limpou o glitter, mas deixou o vazio.

Hoje, ironicamente, vivemos presos ao mesmo espelho retrovisor.
A cada nova onda de nostalgia, o passado ressurge como fetiche: bandas voltando, cortes de cabelo replicados, sintetizadores reabilitados. Os anos 80 viraram uma praga elegante — e nós, os sobreviventes, seguimos celebrando a febre, como se o exagero tivesse sido uma virtude estética.

Mas talvez haja nisso tudo uma sabedoria inconsciente: é mais fácil venerar um tempo em que o rock ainda acreditava em si mesmo do que encarar o presente, onde ele virou playlist corporativa.
Afinal, como diria qualquer refrão da época: somos felizes e não sabemos.

 


 



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A seguir o texto original, publicado na época em jornais locais

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F

oi na década de 80 que as gravadoras brasileiras finalmente perceberam que o Rock, este estranho objeto de rebeldia pode ser muito bem capitalizado e se desvincular com a imagem da Jovem Guarda e ter novamente um lugar ao sol. Depois do sucesso do RPM e das bem sucedidas vendas da Blitz, Lulu Santos e da já veterana Rita Lee a segunda metade da década foi tomada pelo pop-rock que já ensaiava sua revolução alguns anos antes. Muita porcaria (a maioria) invadiu as rádios , mas alguma coisa boa se salvaria no meio, como os até hoje conhecidos IRA! , Ultraje à Rigor, Titãs, Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana, Lobão e até preciosidades menos conhecidas (e em alguns casos até melhores) como Zero, Hojerizah, Replicantes, Cascavelletes, De Falla, Picassos Falsos e muitos outros.

 

E o cinema também não podia deixar de capitalizar em cima dessa onda. Lael Rodrigues dirigiu dois “clássicos” desta época. O primeiro deles, o mais famoso é “Bete Balanço”  de 1984. Roteiro que é bom nada, mas o filme é um delírio para os saudosistas. A história é aquele clichê de sempre, digno dos melhores filmes da Xuxa e da Carla Perez: Garota ingênua do interior vem para o Rio tentar sua carreira como cantora. Como o filme foi feito para adolescentes dos anos 80 o que não falta é sexo. Débora Bloch, a personagem principal transa tanto com Lauro Corona (lembra ?) e com a Maria Zilda. O elenco trás ainda Diogo Vilela, Hugo Carvana, Duse Nacarati, Arthur Muhlenberg e a verdadeira razão de ser desse texto, o rock nacional, aqui representados por (claro) Barão Vermelho (Na época com Cazuza), Lobão e os Ronaldos, Titãs, Brylho, Manhas e Manias (!) , Metralhatxeka (!!). Quem viveu essa época tem motivo de sobra para cultuar esse filme e quem sabe pensar duas vezes quando falar mal de algumas produções mais recentes.

 

O outro grande momento de Lael Rodrigues nos anos 80 foi “Rock Estrela” de 1985, novamente com Diogo Vilela (que roubava a cena no filme anterior) e com , Andréa Beltrão, Adriana Riemer, Gulherme Karam , Vera Mossa (!!!)  e Leo Jaime e a estréia de Malu Mader nos cinemas. Conta a história de Rock , um rapaz do interior (já ouvi isso antes), estudante de música clássica que vai até o Rio morar com o primo, interpretado pelo roqueiro e orkuteiro Léo Jaime. Lá ele fica balançado entre a namoradinha de infância Malu Mader (incorporando vários esteriotípos da década) e a jogadora de Volei Vera. 

É mais um caso de curiosidade do que de qualidade. Mas o desfile de bandas como Metrô, RPM, Tokio, o próprio Leo Jaíme garante uma olhada. E prá quem só conheceu do roqueiro Argentino Fito Paez no acústico do Titãs aqui terá uma boa surpresa. E não é só isso , tem também Celso Blues Boy, Os Melhores, La Torre , Vírus e É o Tcham (não, não é).

Ainda no final do século passado revendo uma fita do Rock in Rio II, de 1991, me surpreendi com as roupas que o público usava. Não me lembrava que a década de 80 perdurou até o começo de 92 mais ou menos. É das coisa que só conseguimos enxergar dado um tempo. Só com a chegada do Nirvana é que parece que a década mudou. Só não consigo ainda enxergar onde começa o novo século, já que a onda do momento é uma crise nostálgica sem tamanho da década de 80 que a mídia não se cansa de explorar. Mas tudo bem, em 2020 vamos poder relembrar desse começo de século, já que na década de 10 com certeza serão os anos 90 que estarão em voga. 

Somos felizes e não sabemos.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Mistérios, Mitos e Pseudoarqueologia: bem-vindo ao mundo de Martin Mystère


Martin Mystère é um personagem da editora italiana Bonelli, criado em 1982 por Alfredo Castelli, depois de anos de tentativas frustradas de lançar um herói chamado de Allan Quatermain em 1978, uma serie com praticamente os mesmos personagens, com nomes diferentes, com excessão do Java. O protagonista obviamente tinha o mesmo nome do descobridor das minas do Rei Salomão

 Nesse intervalo, Hollywood já havia consagrado o arquétipo do arqueólogo aventureiro com Os Caçadores da Arca Perdida (1981), mas a “vibe” do quadrinho foi para outro caminho: pouca ação, muitas investigações e páginas repletas de diálogos — o que afastou parte do grande público. Não à toa, mesmo na Itália a revista nunca foi campeã de vendas, ficando atrás de vários outros personagens Bonelli, especialmente Dylan Dog, criado alguns anos depois e que, durante muito tempo, foi o verdadeiro best-seller da casa, chegando até a inspirar um festival próprio, o Dylan Dog Horror Fest

A comparação entre Mystère e Dylan Dog não é mero capricho: além das afinidades de tom e temática, os dois personagens já dividiram três crossovers e aparecem frequentemente citados nas aventuras um do outro.No Brasil, Mystère estreou em 1986 pela Editora Globo (que no primeiro número ainda se chamava RGE), em uma coleção de 13 edições que, na prática, publicou apenas as 12 primeiras aventuras italianas, já que algumas histórias começavam numa revista e terminavam em outra — exatamente como acontecia também na Itália mas com algumas mudanças que criaram essa edição "extra". 

A título de curiosidade, Alfredo Castelli descobriu anos depois da criação de seu personagem que já existia uma série de livros protagonizada por outro Docteur Mystère — escritos pelo francês Paul D’Ivoi, autor até então desconhecido pelo criador de Martin Mystère. A coincidência dos nomes o intrigou tanto que Castelli tratou de comprar as obras originais.

Fascinado pela descoberta, ele acabou roteirizando algumas histórias em quadrinhos inspiradas nesse Docteur Mystère literário, e decidiu incorporá-lo à cronologia do velho Tio Martin, como se ambos habitassem o mesmo universo ficcional. É uma dessas jogadas metalinguísticas que a Bonelli adora fazer: misturar ficção, arqueologia e ironia num mesmo gesto.

No Brasil, a Mythos Editora publicou dois desses álbuns na primeira metade dos anos 2000 — pequenas relíquias para quem acompanha o universo Bonelli e suas ramificações. Pretendo voltar a falar desse personagem futuramente, porque, no fundo, o Mystère de Castelli e o Mystère de D’Ivoi parecem dialogar à distância — um eco entre o passado e o futuro, entre o romance de aventura e o mistério moderno em quadrinhos.

 

Em 1990, o personagem ressurgiu pela Editora Record, que no primeiro volume republicou justamente as duas primeiras histórias de Mystère. Vale a curiosidade: a versão da primeira aventura lançada pela Record era ligeiramente diferente daquela publicada pela Globo, já que na Itália a história havia recebido alterações nas republicações. Assim, as duas edições brasileiras acabaram trazendo pequenas diferenças entre si, detalhe saboroso para quem gosta de comparar versões.

 A partir do segundo número, a Record seguiu a cronologia onde a Globo havia parado, publicando a edição 13 da série italiana. Só que a fidelidade durou pouco: a partir da quinta edição, a Record começou a pular números, republicar material da fase Globo e até inserir três volumes da série especial italiana. No total, foram 17 edições, e foi justamente através delas que conheci o personagem.

Formado em Antropologia e Arqueologia, Martin Mystère é descrito como um sujeito peculiar, dono de uma curiosidade insaciável e de um apartamento abarrotado de livros e bugigangas — algumas das quais bastante úteis, como sua arma de raios paralisantes. Seus parceiros de aventuras são tão singulares quanto ele: Java, um homem de Neandertal sobrevivente à extinção da própria espécie, e Diana Lombard, a companheira que, após muitos anos, conseguiu levar o “detetive do impossível” ao altar.


Em 2002, Martin Mystère voltou às bancas brasileiras, desta vez pela Mythos. A ordem de publicação não seguia grande lógica, mas ao menos permitiu resgatar várias histórias que a Record havia deixado de lado. Essa fase se estendeu até 2006 e somou 42 edições. Infelizmente não tenho essa série. É de uma epoca onde parei de ler quadrinhos, que durou algo entre 1997-2012, embora tenha esporadicamente comprado alguma coisa.

O personagem só retornaria em 2018, novamente pela Mythos. A série foi reiniciada do número 1 e, nas três primeiras edições, seguiu fielmente a cronologia italiana de onde havia parado na fase anterior. Mas a disciplina durou pouco: logo a editora voltou ao velho hábito de publicar histórias fora de ordem, incluindo números muito adiantados em relação ao que estava em aberto. 

Ainda assim, essa segunda fase chegou a 36 edições e avançou bastante a cronologia, trazendo aventuras já na altura do número 300 da série original italiana. No fim, parecia até um retrato em quadrinhos do próprio Brasil: quando tudo começa a seguir uma ordem, alguém resolve embaralhar as páginas. Ao menos aos poucos ha progresso, mesmo que infelizmente só nos quadrinhos.

A adaptação animada de Martin Mystère, lançada em 2003, é um daqueles casos curiosos em que uma boa ideia se perde na ânsia de ser “moderna”. Produzida pela Marathon Animation em parceria com a RAI e a Canal J, a série transformou o erudito e irônico “detetive do impossível” de Alfredo Castelli em um adolescente genérico de cabelo espetado, pronto para enfrentar monstros e enigmas semanais com a irmã Diana e o inseparável Java — agora um homem das cavernas domesticado que mais parece alívio cômico de sitcom. O resultado é uma versão que mantém o verniz do mistério, mas esvazia seu conteúdo.

Enquanto o Martin das HQs investigava o elo entre ciência e mito com o olhar de um cético fascinado, o da animação parece um caça-fantasmas teen moldado à estética pós-Scooby-Doo e Ben 10. A trama é episódica, previsível, e reduz o tom filosófico e histórico do original a um desfile de monstros, portais e relíquias mágicas. O que era reflexão vira fórmula: cada mistério é resolvido com uma explosão ou uma piada.

Ainda assim, há mérito em como a série preserva — ainda que diluída — a noção de que o mundo é um grande arquivo de segredos esperando ser decifrado. O problema é que o Martin Mystère animado parece ter medo de sua própria complexidade. É um produto da época: ágil, colorido, hiperativo e permanentemente em busca da próxima “missão”. Um desenho divertido, sem dúvida, mas que trocou a curiosidade adulta e iconoclasta de Castelli por uma aventura ligeira demais — onde o mistério virou entretenimento, e o impossível, apenas mais um episódio da semana.


Para os fãs mais fiéis — e, sobretudo, para aqueles que nunca se aventuraram em Mystère justamente por gostar de ordem cronológica — surgiu uma nova esperança: a Editora 85. O projeto, lançado em formato de encadernados, vem trazendo 5 edições italianas por volume, agora em ordem linear. A proposta é clara: publicar as histórias completas dentro de cada encadernado, sem aquela fragmentação que na Itália, durante muito tempo, fazia uma aventura começar numa edição e terminar na seguinte.

 Para efeito de comparação, o primeiro volume da 85 reune as edições italianas 1 a 5, totalizando cinco histórias. Já o segundo volume, apesar de ter número de páginas parecido e cobrir as edições 6 a 10, trouxe apenas três aventuras — maiores, densas, e ainda mais representativas da fase inicial de Mystère. Você pode comprar essa 2 edições nesse link , lembrando que durante a pre venda quem comprar as 2 edições ganha frete grátis.



LADO B DA VIDA - Sister Hazel & Blind Melon

Na seção Entre Fones e Destinos, onde costumo escrever sobre álbuns que me marcaram profundamente, às vezes tropeço em discos menores — aqueles que não mudaram minha vida, mas de alguma forma ficaram comigo por um tempo. São trabalhos que giraram no CD player, tocaram em repetições distraídas, me acompanharam em algum verão esquecido… e depois ficaram por ali, sem que eu corresse atrás de mais nada da banda na maioria dos casos (nem tudo é verdade absoluta).

A ideia aqui não é resgatar clássicos óbvios nem subestimar gigantes: é falar desses pequenos grandes discos, obras que vivem numa zona intermediária entre o apego e o acaso.

 SISTER HAZEL - ".... Somewhere more Familiar" (1997)

O Sister Hazel é uma banda de rock alternativo da Flórida, formada em 1993, que nunca quis reinventar a roda — e nem precisava. Seu som é uma mistura bem acabada de folk, southern rock e pop melódico, herdeiro direto de nomes como Crosby, Stills & NashCreedence Clearwater Revival e de tantas bandas americanas dos anos 90 que ainda acreditavam em refrões de estrada e harmonia vocal.

…Somewhere More Familiar, o segundo álbum do grupo, é o tipo de disco que não surpreende, mas acolhe. Um trabalho redondo, de melodias honestas e guitarras limpas, feito pra quem gosta de canções que soam familiares na primeira audição. O grande hit, “All for You”, colocou a banda no mapa e garantiu o disco de platina — mérito de um refrão simples e irresistível, daqueles que grudam sem pedir licença.

A origem do nome também tem algo de simbólico: Sister Hazel Williams era uma freira de Gainesville que administrava um abrigo para pessoas em situação de rua. O gesto de homenagem diz muito sobre o espírito da banda — generoso, comunitário e fiel ao público. Ao longo dos anos, o grupo manteve projetos beneficentes e um contato quase direto com os fãs, cultivando um público pequeno, mas leal.

No Brasil, o Sister Hazel não chegou a ter o mesmo alcance de um Kings of Leon (ou de seus vizinhos do Matchbox Twenty), mas ocupa um espaço curioso: fazem parte daquela linhagem de bandas que talvez nunca mudem o rumo da música, mas sempre tocam em alguma memória afetiva.

Somewhere More Familiar é um disco solar, de bons arranjos e nenhuma pretensão. O tipo de álbum que não promete revelações — apenas o conforto de um som bem tocado, bem cantado e com cheiro de final de tarde.

Não é um álbum que mudou minha vida.
Mas volta e meia, quando toca “All for You”, muda o meu humor — e talvez seja por isso que, tantos anos depois, ainda me pego cantarolando o refrão como se fosse 1997 outra vez.

BLIND MELON - 1992

Quem não conhece “No Rain”? O clipe da “abelhinha” atravessou gerações e virou ícone dos anos 90 — tanto que ganhou até paródia do Weird Al Yankovic na ótima “Bedrock Anthem”. Mas o disco de estreia do Blind Melon vai muito além desse sucesso solar e melancólico.

Lançado em 1992, o álbum chamou atenção primeiro por um detalhe curioso: o vocalista Shannon Hoon era amigo de Axl Rose e participou de Use Your Illusion em faixas como “Don’t Cry” e “November Rain” (inclusive no clipe). Essa ponte com o Guns N’ Roses deu à banda uma vitrine - mas o que sustentou o interesse foi o som em si.

No ano seguinte, veio o estouro: “No Rain” virou hino de uma geração que ainda equilibrava otimismo e apatia, luz e ressaca. A música catapultou o Blind Melon ao estrelato e, inevitavelmente, acabou engolindo o resto do repertório — o que é uma pena, porque esse primeiro disco é repleto de boas canções que respiram o mesmo ar psicodélico e folk do southern rock setentista.

Faixas como “Change”, com sua letra de autoaceitação e beleza despretensiosa, são pequenas pepitas perdidas em meio ao brilho de “No Rain”. E há outras que mereciam mais luz: “Sleepyhouse”, com sua vibração hippie noventista; “Tones of Home”, que abre o disco com groove e energia; Fugindo um pouco do album Procure tambem por “Soul One”“Toes Across the Floor”“Walk”“St. Andrew’s Fall” e “Mouthful of Cavities” e o belo cover de "Candy Says"  — onde todas revelam uma banda inspirada, mas tragicamente breve.

E, no meio disso tudo, eu caí — só para dar uma emoção.

Sim, o destino, aliás, foi cruel. Logo após o lançamento do segundo álbum, Soup (1995), Shannon Hoon foi encontrado morto no ônibus da turnê, vítima de overdose de cocaína. O Blind Melon lançou ainda o póstumo Nico (batizado com o nome da filha de Shannon) e, anos depois, tentou uma volta em 2008. Mas a magia daquele primeiro disco nunca se repetiu.

Na época, só esse álbum chegou à minha cidade — e talvez por isso tenha ficado mais forte na lembrança. Eu o ouvi muito, repetidas vezes, sem saber que estava testemunhando uma dessas obras únicas que condensam uma era.

Blind Melon de 1992 é exatamente isso: um disco que nasceu sem pressa, com alma de hippie tardio e melodia de estrada poeirenta.
Um disco que lembra que o rock dos anos 90 ainda podia soar esperançoso — antes que tudo virasse ironia, grunge e silêncio.

(Em tempo: esta matéria foi escrita ao som de “Version 2.0”, do Garbage, como você espertamente deve ter percebido — que não entra aqui, mas fica a dica.)


quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Entre Fones e Destino - Parte 4 - THE VELVET UNDERGROUND

Entre Fones e Destino é uma coluna onde analiso alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.

Parte 1(Grandaddy) pode ser acessado aqui.

Parte 2 (David Bowie) pode ser acessado aqui

Parte 3 (Legião Urbana) pode ser acessado aqui



Sabe quando você é super fã de uma banda que nunca ouviu? Pois é.

Morar numa cidadezinha do interior nos anos 90 era aventura para quem gostava de música. Às vezes a gente lia numa revista ou jornal sobre um disco, mas não tocava nas rádios locais e tampouco chegava às lojas. Ao lado de Bariri tem Jaú e Bauru, onde aparecia mais coisa — mas nunca tudo. Em uma dessas idas, entre 1990 e 1991, meu amigo Duzão (descanse em paz) me pediu um disco do Lou Reed. Ele nunca tinha ouvido. Eu, menos ainda.

Depois de rodar várias lojas em Jaú, achei Songs for Drella em uma próximo a praça da matriz. Não fazia ideia de que era o lançamento da época. Foi o único que encontrei e, portanto, o escolhido. Cheguei em casa, coloquei no toca-discos… e não gostei. Acho que o Duzão também não, mas aí já não lembro. Não sabia quem era Lou Reed, muito menos que tinha feito parte de uma tal banda chamada The Velvet Underground. Descobri isso só depois, folheando uma edição da revista Bizz, na sessão “Discoteca Básica”. O subtítulo da seção era impagável: “Compre, empreste, roube. O importante é ter esse disco.” Numa daquelas edições, lá estava ele: o seminal The Velvet Underground & Nico, ou melhor, o “disco da banana”.

Mas uma coisa é ler, outra é ouvir. Entre a revista e a audição real, passaram-se alguns anos. Em 1995 ou 1996, já na faculdade, lembro de um sábado de manhã em que fui com meu amigo Bié a uma loja de discos na Avenida São Carlos. Tinha gasto quase todo o dinheiro na noite anterior (estudante, né). Na prateleira, um box branco com a indefectível banana de Warhol estampada. Trazia toda a discografia da banda. Custava o preço de um rim. Saí da loja sem ele, levei a coletânea Songs in the Key of X: Music from and Inspired by the X-Files bem, muito mais em conta

Mas, nos anos seguintes, já bem mais interessado na banda, me arrependi amargamente de não ter levado aquele box. Não naquele dia, claro — estudante sem dinheiro não tinha como (a não ser que eu levasse ao pé da letra a recomendação da Bizz). Mas eu poderia ao menos ter feito um esforço nos meses seguintes, apertar o bolso, abrir mão de uns gibis… qualquer coisa que me garantisse aquela caixa branca com a banana na capa. Mas, na época, nunca dei muita bola pro veganismo (se bem que muito menos hoje). Hoje talvez tivesse levado o box só para postar no Instagram com a hashtag #BananaOrgânica — e ainda posar de pioneiro.

Em 1998, gravei da MTV o clipe de “Sweet Jane”, registro da reunião de 1994. Foi a primeira vez que tenho consciência de ouvi o Velvet. Vai que ja tivesse ouvido em um filme, afinal “Perfect Day”, do Lou Reed, via Trainspotting, já fazia parte da minha vida. Mas confesso: Sweet Jane não me bateu à época. Ficou perdida entre os VHS gravados

Durante toda a década de 90, o Velvet era um fantasma pairando sobre a minha cabeça: todo mundo falava, mas eu mesmo não ouvia nada. Bandas como Luna, Belle & Sebastian, R.E.M. — que chegou a gravar covers de “There She Goes Again”“Femme Fatale” e “Pale Blue Eyes” (essa última também revisitada pela Marisa Monte, provando que até a MPB já tinha passado pelo labirinto do Velvet) — todos apontavam para eles como referência.

Curioso, porque nas críticas que lia, o Velvet aparecia como sujo, pesado, mergulhado em drogas e sadomasoquismo. Difícil conciliar isso com os escoceses fofinhos do Belle & Sebastian.Na virada para os 2000, a internet já fervia. O Napster tinha caído, mas Emule e Limewire davam conta do recado. Mesmo assim, nunca baixei o Velvet. Foi em Bauru, na mesma loja onde me apresentaram o Luna, que perguntei pelo disco. O vendedor não tinha para vender, mas ofereceu gravar da própria coleção. Depois de uma semana um primo meu me trouxe de Bauru essa gravação, junto com outra icônica, o Primeiro disco do Jupiter Maça e o  "Peloton" do The Delgados, que consegui com o mesmo cara.

Eis que cheguei em casa com um CD-R, capa e encarte em xerox colorido. Coloquei no player e, nos primeiros acordes de “Sunday Morning”, entendi a comparação com Belle & Sebastian. Nada da barulheira que imaginava: havia algo etéreo, delicado, que me pegou de surpresa. Claro, o barulho estava lá em outras faixas, mas não era só isso. Era muito mais.

Poucos discos soam tão inaugurais quanto The Velvet Underground & Nico. Não apenas abriram portas: eles pareciam nascer fora do tempo, como se o futuro tivesse sido prensado em vinil. A banana de Warhol é perfeita: doce por fora, rosa e venenosa por dentro. O choque está tanto nas letras — heroína, prostituição, alienação — quanto na forma: Lou Reed sussurra como quem pede café; Nico canta como uma sacerdotisa gélida perdida em Nova Iorque. Morrison e Cale estilhaçam as canções, Maureen Tucker marca a procissão sombria, e o ouvinte vai sendo puxado para dentro desse mundo sem dó nem piedade.

“Sunday Morning” é falsa inocência. “Heroin”, até hoje, continua uma das canções mais perturbadoras já gravadas. “I’ll Be Your Mirror” é um lampejo de ternura em meio ao caos. Não é um disco perfeito — e aí está sua perfeição. Dissonante, desigual, tosco até. Mas, por isso mesmo, seminal. Como disse Brian Eno: “Pouquíssimas pessoas compraram esse disco, mas todas que compraram formaram uma banda.”

No meu caso, não formei uma banda. Mas virei fã. Fã à distância durante uns dez anos, sem nunca ter ouvido uma nota. Quando finalmente ouvi, foi paixão imediata. E, para fechar o círculo, anos depois comprei o tal box do Velvet Underground — aquele mesmo que me escapou em São Carlos nos anos 90. Hoje tenho dois: um aberto e outro lacrado. Afinal, quem é fã de verdade sabe que nada mais coerente do que ser, ao mesmo tempo, o sujeito que ouve compulsivamente… e o que guarda o objeto intacto, como se ainda fosse aquele fã de uma banda que nunca tinha ouvido.

Anos depois, no Sesc Pinheiros, Lou Reed subiu ao palco para apresentar uma nova versão do lendário Metal Machine Music.O teatro, com sua acústica precisa, logo se transformou num campo de batalha sonora. Antes mesmo de ele aparecer, os ruídos já tomavam o ar — e quando se instalou, de guitarra em punho, a experiência virou algo entre o transe e o caos. Ao seu lado, Ulrich Krieger e Sarth Calhoun disparavam saxofones distorcidos, eletrônicas, drones, zumbidos. Nada lembrava o Lou Reed que os fãs esperavam. Nenhuma melodia, nenhum refrão. Só ruído, puro e denso, como um teste de resistência.

Metade da plateia foi embora. A outra metade, atônia foi diminuindo aos poucos.
Eu fiquei.

E lá estava eu, décadas depois do garoto que comprou Songs for Drella sem saber quem era Lou Reed, ouvindo-o esculpir o silêncio com barulho.
Era o mesmo homem — e, de certo modo, o mesmo menino.

Quando, já perto do fim, ele voltou sozinho e tocou “I’ll Be Your Mirror”, tudo se encaixou.
A canção que nasceu doce e melancólica soava agora como um eco distante, quase metálico.
Mas era um espelho perfeito: distorcido, sim — mas ainda um espelho que brindou os heróis que ficaram naquela noite barulhenta. Não era o Velvet que eu queria mas o que tinha.

E foi ali, naquele momento em que Lou Reed e o ruído se tornaram uma coisa só, que percebi: ser fã de uma banda que nunca ouvi é continuar tentando ouvir o que a gente nunca entende por completo — e é justamente isso que faz a música durar.